O lado menos negativo de uma pandemia

No fundo, penso que o que está a acontecer é que todas as qualidades, mas também alguns defeitos estruturais, estão a vir ao de cima, como se de uma mudança de maré se tratasse.

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LUSA/SEDAT SUNA

Tão bem como o próximo entendo as dificuldades pelas quais estamos a passar, sejam elas sociais ou económicas: trabalho de forma independente num negócio cujo factor presencial é indispensável. Quero, no entanto, contrariamente às mais variadas exposições de opinião em órgãos de comunicação e nas redes sociais identificar também alguns aspectos que surgiram com a pandemia e que vejo como positivos. Atenção, este artigo não é de todo uma tentativa de pintar toda esta situação de cor-de-rosa, tampouco minimizar a dimensão do problema; contudo, acreditando que ganhos e perdas são inevitavelmente coexistentes, em nada leva a mal a análise dos pontos favoráveis que podemos retirar desta crise.

Nunca antes, apesar dos meus escassos anos de vida, experienciei tanto um sentimento de comunidade. Localmente, vejo vizinhos a criarem redes de contactos online para oferecer ajuda a pessoas pertencentes a grupos de risco. A nível nacional, o mais alto reconhecimento pelos profissionais de saúde e todos aqueles que continuam no exercício das suas actividades por serem indispensáveis para o bom funcionamento do país. Globalmente, a disponibilização de conteúdos gratuitos por parte de artistas, com o lançamento de concertos live, escritores, tornando acessíveis ao público os seus e-books, formadores das mais distintas áreas de actividade dando acesso aos seus cursos online. A lista é quase interminável. Arrisco-me até a dizer que fomos alvos de uma onda de solidariedade (por mim) nunca antes vivida e que, se porventura se mantiver pós-covid-19, é provavelmente a consequência mais positiva a retirar desta ordem de eventos.

Outro lado menos negativo é o número (aparente) de praticantes de exercício físico ter subido drasticamente. Talvez por um sentido quase de auto-responsabilização, por estarmos tanto tempo em casa sem nos mexermos mais do que o necessário, estando confinados a um espaço fechado, nos forcemos a contrabalançar isso com a prática do desporto. Em linha com o ponto anterior, creio que possamos atribuir parte da responsabilidade deste impacto tão positivo à profusa quantidade de treinadores e demais profissionais do ramo por estarem a migrar as suas aulas e sessões para o digital.

Por último, a descoberta de novos métodos de trabalho e ensino. Certamente que neste assunto em específico há um longo caminho a percorrer para atingir um fim mais proveitoso que a passada norma. Creio, no entanto, que nas mais diversas áreas profissionais e educacionais esta transição para o online esteja a correr bem e que, no mínimo, proporcione aos profissionais e alunos uma nova perspectiva face àqueles que são os procedimentos, as metodologias e as estratégias normais. Nunca é negativa a experimentação, é onde quero chegar.

No fundo, penso que o que está a acontecer é que todas as qualidades, mas também alguns defeitos estruturais, estão a vir ao de cima, como se de uma mudança de maré se tratasse. Nesta ordem de pensamentos julgo que, enquanto sociedade, o que estamos a fazer é, para além de lutarmos contra o vírus, pormos estes problemas aparentemente intrínsecos em debate. Isto permite-nos uma visão dos problemas como partilhados, ao invés de uma absoluta corrida por estatuto e ganho financeiro.

É um facto que todas as grandes crises moldam o mundo. Ao longo da história, situações com impactos semelhantes, com génese nos mais variados acontecimentos, mudaram estruturalmente o nosso modo de viver: a forma como viajamos depois do 11 de Setembro e os termos em que os créditos são concedidos depois da crise de 2008 são dois exemplos.

Deixo ao leitor a pergunta que a mim me ocorre frequentemente e que, de certa forma, me inquieta: qual será o impacto real pós-pandemia? Voltaremos ao business as usual?

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