Entre aulas de Português e vontade de ensinar, Sara fundou uma “escolinha” de vólei em Díli

Sara Moreira Silva está em Timor-Leste há quase dez anos. Era jogadora de voleibol até uma lesão e o ensino superior terem limitado o sonho. A mais de 14 mil quilómetros de casa, a professora de Português voltou a pegar no desporto e fundou uma escola de voleibol em Díli.

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A equipa de voleibol foi criada sob a alçada do Sport Díli e Benfica DR
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Quando acordamos em Portugal para ir trabalhar de manhã, Sara Moreira Silva já está a treinar-se ou a treinar voleibol em Díli. Professora de Português e Latim de carreira e jogadora de voleibol, Sara partiu para Timor-Leste em 2011, ao abrigo de um programa da Universidade de Coimbra, de onde é natural. Quase dez anos depois, o tempo passado naquele país culmina na criação de uma escola de voleibol para jovens timorenses. A escola de voleibol vai nascer sob a alçada do Sport Díli e Benfica e toda a sua criação foi uma corrida. Em Outubro último, professora e presidente encontraram-se, mencionaram o assunto, juntaram uma equipa e o projecto avançou.

“Chamei duas amigas – as duas jogaram voleibol, uma delas é personal trainer – e elas disseram que sim ao convite. Pensámos em datas e decidimo-nos pelas três primeiras semanas de Novembro para fazer as captações. Abrimos o Benfica a todos os miúdos interessados dos dez aos 15 anos. Fizeram três treinos, três sábados, quem quis fez a inscrição e agora vamos começar a 12 de Janeiro”, conta Sara Moreira Silva ao P3.

Não é a primeira vez que Sara, leitora e professora de Língua Portuguesa na Assembleia da República de Timor-Leste, tenta passar a sua experiência como jogadora para os jovens de Timor-Leste interessados por voleibol. Em 2017, a portuguesa tentou fazer uma equipa “na brincadeira”. “Tínhamos uma bola, tínhamos um campo e eu conhecia muitos miúdos a quem dava aulas na embaixada. Eram cursos abertos e gratuitos e então apanhei muitos a vender ‘pulsa’.” “Pulsa”, explica Sara, “é o carregamento de telefone que normalmente os miúdos vendem na rua”. A ideia surgiu através do presidente do Sport Díli e Benfica e pelas amigas. “Fizemos uns torneios femininos e comecei a descobrir jovens timorenses que jogavam lindamente.”

O talento dos timorenses encantou a professora de Português e fê-la imediatamente pensar no potencial que o país e aqueles jovens têm para aprender voleibol. Havia gente, havia disponibilidade para jogar. Só as condições é que podiam ser melhores. “Aquilo era muito por ver. Era um espaço aberto, grátis, então os miúdos que passavam e queriam jogar vólei e gostavam entravam e juntavam-se à equipa. Quando chovia torrencialmente, nunca parávamos.”

A vontade de tornar o projecto mais sério acabou por ditar o fim da “brincadeira” e Sara Moreira Silva lamenta alguma falta de predisposição para fazer evoluir o projecto em instâncias mais elevadas. “Aqui ainda é muito um mundo de homens”, sublinha, vincando que o travão ao projecto “não foi uma questão de discriminação”, mas sim uma mistura de factores. “Eu não percebia a língua, estava numa reunião a tentar fazer perguntas e não percebiam a minha... A equipa não se inscreveu, eu trabalhava e faltava a reuniões, o Benfica também faltava às reuniões, acabámos por não saber o que fazer.”

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Sara, de 34 anos, já tentou criar uma equipa de voleibol em 2017, em Díli DR

Uma janela fechou-se e Sara ficou “triste”. Entretanto, “muitos dos miúdos conseguiram bolsas do Estado para estudar em Portugal e também desapareceram”. Mas uma nova janela abriu-se e a escola de voleibol do Sport Díli e Benfica passou a estar de portas abertas novamente.

Usar o vólei contra a subnutrição e a falta de água

A experiência falhada em 2017 mostrou que ainda há muito caminho a galgar para criar uma escola com as condições próprias para as crianças de Díli. As condições que o Sport Díli e Benfica conseguiu para formar a equipa de Sara Moreira Silva e das amigas não são perfeitas. Há poucas bolas de jogo em boas condições para treinar e não há tecto para proteger quando o clima é mais adverso. Sem material em bom estado, a cortina da boa vontade começa a abrir-se para mostrar a falta de condições inerentes a tentar desenvolver um desporto que não seja o futebol num país em desenvolvimento como Timor-Leste. Daí que a treinadora tenha aproveitado a criação da escola para abordar questões de cariz social e fazer com os jovens aquilo que melhor sabe fazer: ensinar.

“Uma das coisas que eu disse logo para as captações era que queria ter ali alguma coisa relacionada com nutrição. Uma amiga tem bases de Nutrição no curso dela e contactei o Ministério da Saúde para perguntar se me podiam fornecer materiais, faixas, cartazes, para ter sempre lá nas captações a importância da nutrição, de comer bem, de beber água e a não fumar”, conta Sara, que salienta o papel “impecável” das autoridades.

A importância de educar para a nutrição é particularmente relevante em Timor-Leste, especialmente nas raparigas: os níveis de subnutrição no país continuam elevados (apesar de estarem a melhorar) e, segundo o Global Nutrition Report, cerca de 41% das mulheres entre os 15 e os 49 anos têm anemia, um valor que está a aumentar desde 2008.

A falta de material obriga a treinadora a pensar em formas diferentes de continuar a treinar DR
Sem campo coberto, as equipas de vólei em Díli vêem-se obrigadas a treinar à chuva DR
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A falta de material obriga a treinadora a pensar em formas diferentes de continuar a treinar DR

Além disso, prossegue, o acesso à água potável nem sempre é fácil – aliás, segundo a Organização Mundial de Saúde, o acesso ao saneamento em Timor-Leste é dos mais limitados no Sudeste Asiático –, pelo que a escola quer dar uma ajuda nesse sentido. “[Para que seja possível] uma criança que esteja a jogar voleibol tomar um banho e depois ir para casa fazer os trabalhos de casa e descansar, sem se preocupar com tomar banho na rua... Socialmente, isto acaba por ser bom. Foi um pouco nisso que eu pensei”, reflecte a treinadora.

O projecto também procura mudar um pouco alguns laços familiares. Habituada a “um mundo de homens”, Sara quer que a escola ajude a sensibilizar para “a protecção das meninas” que se vão treinar. “A ideia é que haja mais laços familiares: o pai vai buscar a menina ao fim do treino e sabe que ela está bem ali. Ainda existe muito aquela ideia de tradição de a menina ter que ajudar a mãe, mas o menino já pode praticar desporto”. O objectivo de Sara “não é alterar comportamentos, mas chamar a atenção”.

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A professora de Português (com o equipamento do Sport Díli e Benfica), começou a jogar voleibol na escola. DR

Uma curta carreira reabilitada em Timor

“Sou treinadora, mas não tenho curso”, esclarece Sara. Natural de Coimbra, Sara Moreira Silva começou a ganhar o gosto pelo voleibol nas aulas de Educação Física. A turma evoluiu toda junta dentro do desporto e as aulas passaram a treinos na Académica de Coimbra. “Fizemos dois anos de infantis, dois de iniciadas, dois de juvenis; ainda éramos para fazer um pouco dos juniores, mas a Académica já não tinha dinheiro para essa equipa, teríamos todas de subir para as seniores. Na altura, estava a entrar para a faculdade e então achei que talvez fosse melhor deixar por ali o voleibol... E deixei”, recorda a jogadora. Ainda fez treinos pela Selecção Nacional, mas uma grave lesão na mão travou as esperanças de chegar a internacional.

Foi preciso ir para Timor-Leste para um pequeno “milagre ortopédico” lhe ter devolvido o bichinho. “Em 2010, parti a mão em vários sítios, fiz várias cirurgias e todos os médicos na altura me disseram que ia ficar inválida. Entretanto, cheguei aqui em 2011, ainda não mexia bem a mão e, numa brincadeira com amigos, alguém ma prendeu, deu um puxão e, de repente, foi ao sítio. Não me perguntem como!”, partilha a professora, entre risos.

A inesperada reabilitação abriu uma nova oportunidade para jogar vólei e a saudade desapareceu num instante. “Aproveitei imediatamente para jogar, acho que foi a primeira coisa que fiz. Soube que havia núcleos de voleibol e comecei a jogar com eles.”

Entretanto, a vida deu as suas voltas. Sara, que chegou a Díli via Universidade de Coimbra em Setembro de 2011 como professora contratada pela universidade durante o primeiro ano, ainda voltou a Portugal e esteve um tempo a ensinar Português até partir em 2014 para o Uganda, num programa de voluntariado que durou cinco meses. “Depois, em 2015, voltei pelo Instituto Camões como agente de cooperação, onde fiquei até 2017, e desde 2018 que sou leitora na Assembleia da República.”

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Assim que ultrapassou a lesão, Sara juntou-se a amigas e voltou a ter o voleibol no seu dia-a-dia DR

Pandemia segura o futuro, para já

Para contrariar a tendência que tem atravessado todos os temas sociais possíveis em 2020, a escolinha de voleibol de Sara Moreira Silva não sofreu qualquer contratempo devido à covid-19. O primeiro caso de covid-19 em Timor-Leste foi registado em Março e o país fechou as portas a qualquer evolução da pandemia. No total, foram apenas registados cerca de 30 casos e, à data, há apenas um caso activo, registado a 2 de Dezembro. O estado de emergência no país foi entretanto renovado pela oitava vez na semana passada e deverá durar até 2021.

Durante os primeiros casos, houve tensão no país entre timorenses e portugueses, com acusações por parte dos primeiros de que os professores portugueses teriam entrado infectados em Timor-Leste e propagado o vírus. Sara Moreira Silva teve a possibilidade de regressar a Portugal através de um voo que passou por Díli para levar portugueses, mas decidiu ficar.

“Achei que podia correr mal ficar cá, sabendo que não havia ventiladores nos hospitais. Mas optei por ficar e correu bem: estivemos dois meses em casa, quando acalmou voltei a trabalhar e durante esse tempo sempre fui ao Parlamento fazer gravações. As aulas é que foram dadas à distância, mas, em nós, não afectou nada. Foi um pouco complicado, mas passámos bem”, recorda. “Creio que não é o melhor momento para ir à aventura para outro lugar, seja qual for. Estamos bem onde estamos. Tenho outros projectos no Parlamento, a escolinha de vólei… Vou ficar mais um, dois, três anos”, antevê.

O futuro fica em Díli. É mais um ano a tentar fazer evoluir o voleibol num país que, segundo a treinadora, tem jogadores prontos a dar o salto para um nível mais elevado. Resta esperar por apoios, jogadores e vontade em mudar alguns hábitos. Até lá joga-se, com ou sem rede.

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