A partir do Alentejo, a Cânhamor quer ajudar a descarbonizar as nossas casas

Empresa recém-criada está a construir fábrica de blocos de cânhamo em Ourique, e passará a comprar matéria-prima a agricultores alentejanos.

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Cátia Mendonça
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O israelita Elad Kaspin e o palestiniano Khalid Mansour são os dois principais alicerces de um novo negócio que, a partir do Baixo Alentejo, pretende contribuir para a descarbonização do sector da construção civil e do ciclo de vida dos edifícios. A Cânhamor, criada em 2020, explora o potencial do cânhamo cultivado para fins industriais – a Cannabis sativa – como matéria-prima de blocos, alternativos aos vulgares tijolos, com vantagens já estudadas em termos de isolamento térmico e acústico e no ambiente interior das habitações.

Numa região onde, diariamente, as alterações climáticas vão deixando marcas nos solos, na disponibilidade de água e na vida de quem tenta, às vezes em desespero, adaptar-se a um novo normal em que a seca sucede à seca, com “pouca” chuva pelo meio, o negócio da Cânhamor é uma pedrada no charco. Com pretensões a deixar marcas na economia e na agricultura da região e no negócio global da construção civil – que, se olharmos para todo o ciclo de vida dos edifícios, é responsável por mais de um terço das emissões de gases com efeito de estufa, segundo a ONU.

Todos os dias são anunciados novos desenvolvimentos na produção de energias limpas. A evolução tecnológica é essencial para a transição energética e para o abandono das fontes fósseis, como o petróleo, o gás e o carvão, mas, por vezes, a comunicação em torno do combate às alterações climáticas centra-se demasiado em soluções que mantêm elevados níveis de consumo de energia (o que atrasa a transição), e menos na eficiência energética das nossas opções.

Descarbonizar a construção

O cimento e o betão, por si só, são responsáveis por 4% a 8% das emissões globais, como assinalava o The Guardian num extenso trabalho em 2019, e, se fosse um país, este material só ficaria atrás de China (29,16%), EUA (11,19%) e, eventualmente, Índia (7,33%) na lista de emissores. O sector da construção é, por esta e outras razões, um dos que tanto precisam de mudar as fontes da energia com que trabalham, como de diminuir a intensidade energética e a pegada carbónica associada aos materiais que usam.

O sector precisa, também, de produzir edifícios que gastem menos energia para serem aquecidos ou arrefecidos, ao longo da sua vida útil, e que gerem menos resíduos no fim do ciclo. Neste campo, a utilização de vários biomateriais e a incorporação de resíduos de outros sectores nos edifícios está em crescendo, e Portugal, por exemplo, tem na cortiça, um produto extraído da árvore património nacional, o sobreiro, um material de isolamento e revestimento interior e exterior com características excelentes e pegada negativa.

Material com pegada “negativa”

Com um crescimento rápido e uma capacidade de absorção de carbono e de melhoramento dos solos já reconhecida cientificamente, o cânhamo é outro exemplo de como a natureza pode ajudar a baixar drasticamente as emissões, ao ser usado para “produzir” algo que melhora o comportamento térmico e acústico do edificado. Isto além de outros benefícios, na qualidade do ar interior e na regulação da humidade, apontados por estudos científicos.

O sistema produtivo do “betão” LHC (light hemp concrete), que inclui a mistura com um ligante à base de cal hidráulica natural, e prensagem e secagem sem recurso a fontes artificiais de calor, garante um processo quase neutro em emissões. Processo esse que se torna negativo, pois, nota a Comissão Europeia, “um hectare cultivado com cânhamo armazena entre 9 e 15 toneladas de CO₂”.

Estas características levaram os fundadores da Cânhamor a orientarem os seus esforços de pesquisa e investimento inicial, de cerca de um milhão de euros, para a criação de uma unidade de produção de “betão” a partir da palha obtida com o interior do caule da planta. Há quem o aplique em obra, como acontece com o betão tradicional, mas aqui a opção passa pelos blocos pré-fabricados, para controlarem, em fábrica, a homogeneidade do produto, em termos dimensionais e de características técnicas, o que facilitou, também, o processo de certificação.

Os blocos de construção são produzidos a partir de palha de cânhamo, misturada com um ligante à base de cal hidráulica natural. DR
Pela sua menor condutividade térmica e grande absorção acústica, os blocos da Cânhamor estão a ser usados em paredes simples (em vez de parede dupla com isolamento), o que permite, segundo Elad Kaspin, poupanças quer no tempo, quer nos custos de construção. DR
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Os blocos de construção são produzidos a partir de palha de cânhamo, misturada com um ligante à base de cal hidráulica natural. DR

Mais de 40 casas construídas

A fábrica-piloto, instalada desde 2020 num armazém em Colos, concelho de Odemira, começou em Novembro de 2021 a fabricar os primeiros blocos, que, depois de certificados, já foram usados em mais de 40 construções, explica Elad Kaspin. Dezenas de outras aguardam licenciamento e a empresa está a participar, com o seu material e conhecimento, em concursos para a construção de habitações a custos controlados, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência.

Para os construtores, a promessa é a disponibilização de um material mais leve do que um bloco de cimento, com diferentes espessuras, para uso em construção nova ou reabilitação, em fachadas e divisórias interiores. Pela sua menor condutividade térmica e grande absorção acústica, os blocos estão a ser usados em paredes simples (em vez de parede dupla com isolamento), o que permite, segundo Elad Kaspin, poupanças quer no tempo, quer nos custos de construção.

Além disso, o produto saído da fábrica da Cânhamor contribuirá, como outros, para alcançar as metas europeias de construção de edifícios de muito baixo consumo de energia – que, associados a sistemas de produção de energia e aquecimento de águas, passarão, no final de contas, a ser produtores líquidos de energia eléctrica e térmica. Um objectivo essencial para cumprir as metas do Acordo de Paris.

Nova fábrica em 2024

Com um investimento de 15 milhões de euros suportado, em parte, por fundos do Portugal 2030, e com apoio do município de Ourique, que lhes cedeu o terreno, a Cânhamor vai mudar-se em 2024 para a localidade de Garvão, onde está ser erguida a sua nova fábrica, que será a primeira do género na Península Ibérica. Com ela, os seus responsáveis esperam passar de 13 para 30 funcionários e, mais do que isso, impulsionar a produção de blocos a partir de cânhamo cultivado na região.

Neste momento, mesmo tendo já testado o cultivo em 20 hectares, a empresa depende essencialmente de “palha” importada de França – o maior produtor europeu de Cannabis sativa. Mas na campanha de 2024 tem já contratada a aquisição da produção em 250 hectares no Baixo Alentejo, opção que anulará o impacto negativo, em custos e emissões, da logística de transporte e incrementará, na contabilidade do ciclo de produção, o carácter de acumulador de carbono do material.

Garvão, localidade situada a oeste da vila de Ourique, a 50 quilómetros do mar, é um daqueles lugares onde a interioridade não se mede por oposição à litoralidade, mas pela presença inequívoca de outras condições, com a baixa densidade populacional à cabeça. A Cânhamor sente os efeitos do despovoamento do Alentejo, mas, ainda assim, Elad garante que não desistem de contratar entre a população local.

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A Cânhamor produz blocos de construção a partir de "palha" de cânhamo, no concelho de Odemira DR

Impacto na comunidade

É certo, como o próprio recorda, que ele e o seu principal sócio vieram de fora, mas a filosofia do negócio que montaram inclui a perspectiva de um impacto socioeconómico positivo na comunidade, insiste. O que os leva, explica, a pagar no mínimo “1500 euros, mais impostos” a quem ali trabalha como ajudante de operação. E não deixa de destacar o impacto da Cânhamor noutras actividades – como a consultoria, a arquitectura e a engenharia, por exemplo.

O modelo de fornecimento de cânhamo para os blocos é outra faceta deste compromisso. A empresa quer pagar 350 euros por tonelada de “palha seca” aos produtores que quiserem ser seus parceiros, garantindo a compra de até sete toneladas de material por hectare.

Este valor é, garante Elad, praticamente o dobro do que se paga em França. Mas o co-fundador da Cânhamor não vê outra forma de garantir acesso à matéria-prima, numa região em que os agricultores com terrenos em área de regadio se têm voltado para culturas permanentes, como o olival e o amendoal, e outras culturas anuais, como o milho, ou para as hortícolas e pequenos frutos, em estufas, apesar da crise hídrica.

Uma alternativa mais para a agricultura

Além da perspectiva de rentabilidade, a disponibilidade de água é o factor que dita as opções de quem cultiva a terra, como se percebe no discurso de Carlos Coutinho, agricultor instalado em Alvalade do Sado. Numa propriedade de 700 hectares tem olival, montado para produção de cortiça, eucaliptal e pinhal. Já produziu tomate, cereais, como trigo, milho e colza, e no ano passado cedeu uma parcela para que a Cânhamor pudesse testar a produção de cânhamo.

Apesar de necessitar de rega, as menores exigências em termos de água fazem da Cannabis sativa mais uma opção neste território em seca permanente há muitos anos. Para além do escoamento do caule, do qual se retira a palha para blocos, mas também fibra para múltiplos usos, no têxtil ou em materiais de isolamento térmico, a recente abertura das autoridades à venda de sementes desta variedade para alimentação humana – pelo seu elevado teor de fibras, vitaminas, ómega-3 e minerais – e animal pode ajudar a impulsionar esta cultura.

Poder vender palha e sementes “é importante para que o cânhamo se torne interessante economicamente para o agricultor”, nota Carlos Coutinho, que, aos 46 anos, tem um percurso ligado à gestão de empresas de outros sectores e trabalho com multinacionais, e que se apaixonou pela terra, ao pegar há alguns anos na propriedade da família.

O cânhamo garante assim mais uma saída, com a vantagem de ser reconhecidamente uma cultura melhoradora de solos, que beneficia, por isso, a produtividade de outras plantações, assinala Nuno Faustino, da Federação de Agricultores do Baixo Alentejo. Mas ainda há trabalho a fazer para, por exemplo, eliminar mitos sobre a planta e o seu uso para produção de substâncias psicoactivas.

Cultura esquecida

Em Portugal, o cânhamo já foi usado, durante séculos, para produzir cordas e cabos de navegação, mas é hoje uma cultura relativamente esquecida no país. Faustino, agricultor e produtor de porco alentejano, está a fazer consultoria para a Cânhamor, tentando ajudar a empresa a encontrar terras para suprir as necessidades da nova fábrica. Elad Kaspin estima que, a uma média de sete toneladas por hectare, seja preciso cultivar uns 1500 hectares para abastecer a unidade que está a ser construída em Garvão.

Além de Nuno Faustino, um nome reconhecido na região, a empresa contratou serviços de um consultor luso-francês, com experiência no cultivo de cânhamo em França, e que está a dar apoio técnico aos produtores portugueses, e ainda conta com uma outra consultora portuguesa do sector agro-alimentar, que os ajudará a perspectivar os custos e rendimentos associados a este cultivo. Com este enquadramento, acredita Faustino, será possível encontrar mais interessados.

Por outro lado, Nuno Faustino, que por falta de acesso a rega nas suas terras não vai cultivar cânhamo, elogia a opção dos fundadores por Ourique. Um concelho a precisar de investimento e de empregos que fixem a população. “Eles querem ter um impacto social e económico positivo, têm uma atitude exemplar”, elogia.

Na Cânhamor, Elad Kaspin costuma receber produtores curiosos com os blocos de cânhamo e com a filosofia da empresa, que pretende garantir uma produção livre de resíduos e absolutamente circular: as fibras da planta servirão para o fabrico de material de isolamento e têxteis, as sobras e o pó para produção de pellets, e até os blocos defeituosos são triturados e incorporados em novos blocos.

Com o silo que vão ter na nova unidade, deixarão de comprar a cal em sacos de plástico, armazenando grandes quantidades. E, com o fim da importação da palha, também se livrarão das embalagens em que esta lhes chega e daquela que é, neste momento, a sua maior pegada ambiental, o transporte. Que ainda assim, insiste Elad, não apaga o “grande benefício ecológico” deste produto.

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