Amor sem hora marcada

Nasceram numa época em que o sexo era assunto tabu. Cresceram sem fazer perguntas. Descobriram o corpo, o desejo, o prazer. Elas sempre preparadas para eles. Eles cumprindo normas estabelecidas por uma sociedade tradicional. Perceberam que a sexualidade muda com o passar dos anos. Adquire outro sabor. Perde a intempestividade. Anda de braço dado com a ternura. Pode envelhecer de forma natural.

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Ele perguntou-me: pego em ti ao colo? E eu respondi-lhe que não.” Lucinda Fardilha recua 45 anos, ao dia do casamento, quando chegou a casa com o homem da sua vida, Constantino Fardilha, rapaz “muito perfeito, muito giro”. Ela tinha 17, ele 24. Lembra-se de tudo. Casaram-se pela igreja, fizeram juras de amor eterno, depois da festa foram ao cinema ver o musical Los Chicos con Las Chicas. Jantaram um prego no pão num restaurante, chegaram à nova casa pouco depois da meia-noite e, antes de se deitarem juntos pela primeira vez, Lucinda ouviu aquela romântica pergunta. “No dia do casamento, foi a primeira vez e foi uma coisa natural.” 

Lucinda e Constantino têm uma vida sexualmente activa. Ela tem 62 anos, ele 70. O sofá da sala é o cantinho do namoro, dos beijinhos e abraços, do amor incondicional. O desejo não desapareceu e o sexo acontece quando há vontade e predisposição. Todas as noites, sem excepção, há um beijinho de boa-noite. Antes de se deitar, Lucinda não descura a higiene. Coloca creme no corpo, nada de perfumes com cheiros intensos porque o olfacto do marido é apurado. “Gosto de deitar-me a cheirar bem. Quando o meu marido se deita comigo, gosto de estar preparada para ele.” Trabalhou numa fábrica de calçado, foi empregada de escritório numa agência de contabilidade e há 35 anos que partilha o negócio por conta própria do marido no ramo mobiliário. Na adolescência, o sexo nunca foi tema de conversa com os pais. Na cama, nunca tomou a iniciativa. O recato vem da educação que mandava as raparigas guardarem-se até ao dia do casamento e a estarem sempre disponíveis para o que o marido quisesse. “A minha vida sexual com a Lucinda foi sempre muito querida. Esteve sempre preparada para mim. Mas nunca me preocupo comigo, é sempre com ela”, garante Constantino. Lucinda é pequenina no corpo, gigante nos afectos. “Estou sempre preparada para o receber, quando ele quiser.” As mudanças que o tempo provocou não atrapalham a vida do casal. “O meu corpo não mudou muito. Nunca tive complexos de me despir à frente do meu marido. Tomávamos banho juntos e ainda o fazemos de vez em quando.” Têm três filhos e três netos. 

Nada está definido na hora de se deitarem. “O sexo também existe na nossa idade, claro, não com muita frequência. Não está programado, fazemos quando acontece, fazemos com amor e com carinho e, como em outras situações, para nos complementarmos um ao outro”, conta Lucinda. Mas tudo depende de como estiver a cabeça de Constantino. “Sei que já não sou jovem. O apetite é diferente e está muito condicionado ao meu stress diário.” Não pode haver preocupações na cabeça do homem de negócios. “Há mais apetite quando se é mais jovem. Agora depende muito se ando mais ou menos preocupado. Agora é mais soft”, acrescenta Constantino, que garante que a “maneira de estar com a Lucinda na cama é exactamente igual ao que era”. 

Descobriram-se um ao outro durante a vida de casados. Por conta própria. “Não sentimos saudade dos tempos em que o desejo era mais forte”, admite Lucinda. “Após o casamento, vem a paixão e na nossa idade vivemos o amor porque é agora que o amor existe.” A sexualidade continua a ser importante, mas não fundamental na vida do casal. “O sexo na nossa idade tem valor, é um complemento, mas não é necessário para vivermos o nosso amor a dois. Já vivemos o sexo da juventude, fomos aprendendo um com o outro ao longo da nossa vida de casal. Falamos sobre isso. Partilhamos o dia-a-dia, temos uma vivência de amor, completamo-nos na totalidade.” “Não podemos passar um sem o outro. Precisamos de amor, de atenção, de carinho, de palavras bonitas”, afirma serena e sorridente. 

Actualmente, o sexo deixou de ser assunto tabu e a forma como é exposto assusta Lucinda. “Os homens deste século são capazes de ficar impotentes mais cedo”, comenta. Tudo à vista, menos interesse? “Pernas ao léu, filmes pornográficos na Internet. Tudo exposto. Há um desinteresse quando se vê tudo e a juventude de hoje não aprecia o sabor que antes existia.” Constantino concorda. “Havia mais criatividade, mais intensidade, mais entusiasmo. Fazia-se porque se gostava de fazer.” “Fizemos as nossas brincadeiras, mas muito inocentes”, acrescenta Lucinda. 

Lucinda e Constantino conheceram-se num encontro da Juventude Operária Católica. Ela tinha 14 e ele 22. Constantino era catequista e caixeiro-viajante de tapeçarias. Rapaz vaidoso, bem vestido, unhas sempre limpinhas. Tinha uma motorizada vermelha. Naquele encontro, no largo de terra batida de uma igreja, os seus olhos não largaram a pequena Lucinda. “Tinha uma trança para a frentex e um ratinho no peito”, recorda. Rapaz brincalhão, meteu conversa, pediu-lhe a morada. E antes de partir para o Ultramar, para Angola, pediu-lhe para ser sua madrinha de guerra. Deu-lhe 20 escudos para comprar selos. Ainda não eram namorados, mas era como se fossem. 

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Lucinda e Constantino Fardilha estão casados há 45 anos

O sexo envelhece bem

O sexo não tem bilhete de identidade com data de renovação. “Permanecemos sexuados até ao fim”, refere o psiquiatra e sexólogo Júlio Machado Vaz. A idade é um factor a ter em conta, mas não é determinante para que o corpo deixe de ter prazer. “É vulgar ouvir relatos de uma qualidade enriquecida por um contacto mais íntimo, esculpido pelos anos.” Há vários ingredientes nesta equação. Sexualidade activa, maior auto-estima. “Acontece que, numa sociedade que entroniza a juventude, o envelhecimento é sentido como ameaçador, sobretudo pelas mulheres, culturalmente mais ‘agrilhoadas’ à beleza.” O sexo pode acusar a passagem do tempo, mas não acaba. “Com sorte e sageza, o sexo envelhece bem, torna-se menos ávido, dá o braço à ternura, cultiva a fantasia paulatina que conduz ao erotismo, tão lamentavelmente alheio a este mundo rendido à eficácia instantânea”, diz o sexólogo.

Quando Maria Amália subiu ao altar naquele domingo, 7 de Novembro de 1964, às sete da manhã, levava uma barriga de grávida de sete meses. Demorou algum tempo a perceber que tinha um bebé na barriga no seu corpo de solteira. Tinha 17 anos. O namorado, Diamantino Paiva, era maior de idade, 19 anos, e aceitou a criança. Maria Amália falou com a mãe e não houve zangas em casa. “Aconteceu e confessei o meu pecado.” O padre não implicou com o estado de graça da noiva e a cerimónia realizou-se apenas com a família mais próxima. “Tão inocente, a gente era tão inocente naquela altura”, desabafa Maria Amália. O sexo era tema proibido e as brincadeiras do namoro não deveriam ter consequências. “Não se faziam exames ao corpo, a gente não sabia o que se passava.” No dia do casamento, o marido partiu para a tropa. Não houve noite de núpcias e lua-de-mel, nem sequer fazia parte dos planos de uma família pobre de 11 irmãos, gente simples que comia o que semeava na aldeia.  

A casa dos pais de Maria Amália seria a morada do casal. Diamantino Silva tinha perdido os pais muito novo e fez-se homem cedo. “Fui à comunhão solene de calças de farrapos e sapatilhas de pano emprestadas”, recorda. Diamantino tem 70 anos. Há poucos anos teve uma depressão que quase ia colocando um ponto final na sua vida sexual. Procurou ajuda médica e o desejo voltou. Não quer falar sobre a sua vida sexual. Deixa as explicações para a mulher, mas tira da carteira a foto a preto e branco da sua Amália, dos tempos de solteiro, e mostra o que escreveu no verso. “Recordação da minha mulher mais querida oferecida em solteiro quando nos namorávamos naqueles domingos mais contentes.” 

“Não andei com mais homem nenhum. Ele era muito bonito.” Maria Amália tem 67 anos, uma saúde frágil. “O sexo na terceira idade já não é como na primeira ou na segunda idade. Quando se é novo, é-se novo para tudo.” A depressão do marido suspendeu o sexo durante cerca de um ano. Maria Amália não se importou, embora os carinhos que aconteciam na cama fossem, confessa, sinal de amor do seu marido que, a esse nível, sempre tinha sido “muito activo”. “Já não me procurava, não tinha reacção. A cabeça não andava bem, a parte sexual foi logo à vida.” Não era assunto que lhe tirasse o sono, mas percebia que o seu Diamantino andava abatido, preocupado com as fragilidades do corpo. “Agora já me procura, faz uma vezita ou outra e fica todo contente, todo satisfeito.” Maria Amália também. “É mais raras vezes, uma vezita por mês de vez em quando, mas continua a ser bom.” 

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Diamantino e Maria Amália comemoram as Bodas de Ouro em Novembro próximo

“Tivemos altos e baixos, mas nunca nos separámos, nem na cama, nem em qualquer lado.” Têm oito filhos, seis raparigas e dois rapazes. Quatro nasceram em casa com “parteira diplomada”. Seis vivem na Suíça. Têm 16 netos e dois bisnetos. Em Novembro, fazem 50 anos de casados e os preparativos começaram. “Vai haver missa, festa no restaurante.” Os filhos oferecem as alianças das bodas de ouro. Maria Amália tem a fatiota na cabeça. Vai comprar tecido azul para mandar fazer um casaco e uma saia com racha de lado. A blusa será pérola.  

A frequência do sexo na terceira idade tende a diminuir, como acontece com outras actividades que acabam por sair da agenda, mas não singifica um ponto final. Júlio Machado Vaz avisa que não se pode generalizar, até porque, lembra, “há jovens para quem o sexo não é importante ou aparece como ameaçador e vejam-se os recentes estudos japoneses que mostram idosos com vigor invejável”.

Juntos como casal, juntos como irmãos

Eduardo Pinto e Olímpia Pinto já não dormem juntos. Ela diz que já lá vão cinco anos. Ele garante que serão dois, três no máximo. “Foi uma separação de camas por mútuo acordo”, explica Olímpia, 76 anos. Eduardo tem 72 e problemas de saúde. Hérnias discais, artroses, problemas de ossos que lhe prendem os movimentos e lhe adormeceram a vitalidade do corpo. Dorme com duas almofadas, uma debaixo de cada braço, para estar confortável, uma posição que tornava difícil a partilha da cama. Ele ficou no quarto de casal, Olímpia mudou-se para o quarto ao lado. Eduardo reconhece: “Não é fácil falar desta situação, somos da geração que não falava dessas coisas.”

Não há sexo, mas também não parece haver necessidade. Sentem-se marido e mulher, vivem como irmãos. “Não tenho apetites de nada”, diz ela. “Se tivesse, procurava-a, mas não posso”, diz ele. “Conversamos sobre o assunto e já disse à minha mulher que o sexo é bom e é preciso, mas também podemos viver sem ele, há outras coisas.” Há cumplicidade, uma vida partilhada nos bons e maus momentos, carinho e dedicação que lhes lembram por que se casaram. 

No namoro, houve beijinhos e não muito mais do que isso. Desejo havia muito. Mas o peso da educação falava mais alto. “Fui pura para o casamento, como a minha mãe me deitou ao mundo. Na noite de núpcias, perdi a minha honra.” Olímpia foi aprendendo com o marido a perder a vergonha, as formas de satisfazer os apetites do corpo, a ter prazer. Nunca tomou a iniciativa ou comprou lingerie arrojada. “Era uma atadinha, foi ele que me abriu os olhos. Gostava de ter vontade própria...” 

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Eduardo e Olímpia Pinto sentem-se casal mas vivem como irmãos

Tiveram uma sexualidade activa, menos frequente nos últimos anos. O assunto, volta e meia, é tema de conversa, mas não motivo de preocupações ou um bicho de sete cabeças. Aceitam a situação e garantem que são um casal feliz. Eduardo gosta de se entreter no computador arrumado numa pequena secretária no canto da sala de estar. Olímpia passa os dias na cozinha, nas lides domésticas. E quando o assunto é a exposição que hoje o sexo tem, Olímpia não encontra palavras bonitas. “É badalhoco de mais.” “Exagerado”, corrige Eduardo. Estão casados há 44 anos. Têm uma filha e dois netos. Ficar grávida foi complicado para Olímpia, que ia desesperando. “Eu e o meu marido não fazíamos batota. Cheguei a uma altura em que já estava farta de esgaçar as pernas nas marquesas dos consultórios”, recorda. Tomou “umas injecções” e conseguiu engravidar. 

Conheceram-se no comboio. Ela entrava em Espinho pelas 7h30 e seguia até Oliveira de Azeméis, era telefonista numa empresa e chegaria a escriturária. Ele entrava algumas estações adiante, em Santa Maria da Feira, para sair em São João da Madeira, ia pegar ao trabalho numa empresa de camisas, onde era escriturário. O pai de Olímpia era maquinista dos caminhos-de-ferro, o que significava benesses. Viajava em primeira classe com bilhete mais barato, que lhe custava três escudos e 50 centavos por dia. “Arranjava sempre um lugar para ele, mas ele nunca se sentava à minha beira”, recorda. Ela de olho nele. Ele a disfarçar que não era nada consigo. “Tinha uma simpatia por ele”, confessa. Até que ele decidiu meter conversa, comentando as meias de fio de pesca com que Olímpia cobria as pernas. Começou a sentar-se ao seu lado, encontravam-se ao fim-de-semana, iam ao cinema. Falaram de relações antigas, partilharam desgostos de amor, e o namoro começou. Olímpia tinha 30 anos e avisou-o. “Não tinha idade para andar a brincar. Comigo era preto preto, branco branco.”

Falta de desejo

Com o passar dos anos, há alterações corporais, fisiológicas, hormonais, psíquicas. Pedro Nobre, director do SexLab, professor de Psicologia na área da Sexologia da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, garante que é importante saber lidar com essas modificações no corpo, na resposta sexual. “A vida sexual pode perder a dimensão central na vida dos casais, deixar de fazer sentido e passar a ser secundária. A partir da menopausa e da andropausa, a actividade sexual, o desejo, o prazer, diminuem e isso prejudica a vivência do casal.” Esta é uma perspectiva. Mas há outra. “Há idosos que se adaptam às alterações, que têm uma ideia mais flexível, que acham que a sexualidade pode continuar.” E há um aspecto que convém desmistificar. “A ideia errada de que as mudanças físicas e fisiológicas são sinais de problemas sexuais.” 

Pedro Nobre e Maria Manuela Peixoto, da mesma faculdade, estudaram as disfunções sexuais numa amostra feminina, 500 mulheres com idades entre os 18 e os 79 anos, e concluíram que os problemas sexuais aumentam com a idade. Ao todo, 37,9% das mulheres portuguesas admitiram ter problemas sexuais. A falta de desejo surge em primeiro lugar, com 25,4%, seguindo-se as dificuldades em atingir o orgasmo, com 16,8%, e a perda de excitação sexual, com 15,1%, e ainda dificuldades de lubrificação vaginal, com 12,9%. 

São as mulheres com mais de 65 anos que mais relatam disfunções na sua sexualidade, com a falta de desejo sexual a assumir maior relevo. Num outro estudo, Pedro Nobre e Ana Luísa Gomes, da Universidade de Aveiro, estudaram a população masculina portuguesa, numa amostra de 650 homens entre os 18 e os 70 anos. A ejaculação precoce afecta 23,2%, seguindo-se problemas de erecção, com 10,2%, dificuldade em atingir o orgasmo, com 8,2%, e falta de apetite sexual, com 2,9%. Também nos homens a idade é um factor importante: os problemas de erecção duplicam de percentagem a partir dos 45 anos (12%) e têm maior prevalência a partir dos 55 anos (21%). As dificuldades em atingir o orgasmo aumentam igualmente e a falta de apetite sexual não escapa à regra — 2% por cento em homens com menos de 55 anos e 7% nos que têm mais de 55.    

Pedro Nobre sublinha que o sexo não vive só da penetração. “Beijos e carinhos são partes indispensáveis, expressões de afecto que são expressões sexuais mais ou menos explícitas, mais ou menos genitais. A vivência sexual, e os estudos, demonstram-no de forma consistente, e é um dos melhores predictores de satisfação entre os casais em qualquer idade — satisfação no casal e mesmo satisfação pela vida.”

Sem medo do corpo

Maria do Carmo teve várias vidas num corpo de 75 anos que nega as evidências da passagem do tempo — não parece ter chegado aos 70. É uma mulher bonita. Vaidosa. Cabelo louro, olhos verdes. Blusa sem mangas, calças claras, sandálias de salto alto. Tem um filho, três netos, cinco bisnetos. Aos 14 anos, pensava que os bebés nasciam pelo umbigo. Foi uma amiga dois anos mais nova que lhe explicou que não era assim. Namorou três anos e meio. Casou-se aos 21 anos, foi mãe aos 22. Aos 34 anos, decidiu estudar à noite para ter o 7.º ano e melhorar a vida. Tirou a carta aos 47, comprou o primeiro carro aos 50. Ficou viúva aos 52. Aos 62 anos, começou a namorar com um homem divorciado e 12 anos mais novo. O sexo voltou a fazer parte da sua vida, quando apetece, sem hora marcada. 

O destino trocou-lhe as voltas. “A minha ideia era ficar viúva, achava que não tinha idade para arranjar alguém.” Mas o amor surpreendeu-a ainda antes da actual relação. “Apaixonei-me perdidamente por uma pessoa.” Percebeu que não iria funcionar, foi somando desilusões com as ausências aos encontros combinados. “Pus os pés na parede, não servia, não queria.” Acabou o que nem sequer tinha chegado a começar.

Desde há 13 anos que Maria do Carmo tem um novo companheiro, mas não vivem debaixo do mesmo tecto. Conheceram-se em Fevereiro e o sexo surgiu três meses depois. Maria do Carmo precisou de tempo. “Disse-lhe abertamente: ‘Agora estou preparada’.” E estava. “É importante na medida em que tenho alguém para conversar. Sexualmente falando, é natural que as coisas aconteçam. Não temos dias marcados, quando acontece, acontece.” De vez em quando, é ela que toma a iniciativa e ele acha-lhe piada. Porém, o peso da educação tradicional faz-se sentir. “Não é na minha idade que vou experimentar certas coisas.”

As mudanças no corpo não a inibem nem lhe atrapalham a vida. “Para já, não me têm causado incómodo, não me preocupam muito.” Vai ao ginásio todas as manhãs — e prefere exercícios puxados de pilates, ioga ou caminhada, excepto hidroginástica que lhe estraga o cabelo —, vai ao cabeleireiro todas as semanas, tem actividades que lhe enchem os dias, almoços com as amigas. Mulher de personalidade forte que não perde muito tempo a falar do passado que viveu em 31 anos de casada. “Em nova, nunca conheci o meu corpo.” Mesmo assim, descobriu que havia o diafragma para não engravidar. Encomendava-o a uma senhora que o trazia de Espanha.

“A vida obrigou-me a abrir os olhos.” Aos seis anos, depois de o pai morrer e de a mãe arranjar um namorado, foi viver com a avó e os tios. A avó não permitia que a pequena neta fosse morar debaixo do mesmo tecto do padrasto. O tio era tipógrafo, levava para casa romances, histórias, que pedia à sobrinha para ler em voz alta e que não facilitava quando a leitura não respeitava a pontuação. Maria do Carmo aprendeu com esse rigor. Enriqueceu o vocabulário, aprendeu a escrever cartas. Entrou numa companhia de seguros como empregada de limpeza, depois de ter trabalhado numa fábrica de tecidos. O seu à-vontade com as palavras, os exames escritos que se destacavam dos candidatos a melhores lugares e o seu jeito especial para lidar com pessoas — o patrão dizia-lhe que parecia uma assistente social — abriram-lhe um lugar nos recursos humanos numa empresa que tinha apenas duas mulheres no quadro. Nessa empresa, os homens abriam-lhe a porta para passar para o elevador e ela pensava que estavam a gozar. Foi uma choradeira pegada sozinha, em casa, até perceber que aquele gesto era delicadeza. Sempre foi muito vaidosa, gostava de se arranjar, de pintar as unhas, como empregada de limpeza usava luvas para não estragar a pele com os detergentes. Depois de enviuvar, começou a sair de casa para dançar em vários sítios do Porto. “Tinha fome dessas coisas e não havia quem me segurasse.” Teve vários pretendentes, alguns mais novos, e várias propostas. “A gente só faz o que quer.”

Na juventude, não se falava de sexo em casa. Na fábrica de tecidos, ouvia coisas. “As pessoas mais velhas diziam muitas parvoíces”, lembra. Mulheres tomarem a iniciativa na cama? Nem pensar. “Dizia-se que as mulheres que faziam isso queriam mais do que os homens e isso não podia ser.” A primeira vez teria de ser na noite do casamento. Nunca antes. “Os homens tinham obrigação de fazer sexo naquela noite e muitas vezes para mostrar que eram mesmo homens.”

“Os velhos também fazem sexo”, refere Ana Alexandra Carvalheira, psicóloga investigadora do ISPA — Instituto Superior de Psicologia Aplicada, que, no entanto, lembra que a sexualidade na velhice tem sido um assunto “negligenciado, marginalizado, estigmatizado”. Desde logo, porque os mais velhos são “socialmente mais marginalizados”. Por outro lado, o modelo sexual é abordado sobretudo na vertente genital e reprodutora e, por isso, poderia acabar depois da menopausa. Mas não. “O que pode perturbar a sexualidade dos mais velhos é basicamente os tratamentos de saúde”, diz. Há, no entanto, factores protectores. Um deles é os casais “terem tido um padrão sexual activo e satisfatório ao longo da vida”. Há ainda um maior interesse por uma sexualidade mais global e centrada nos afectos e a ausência do receio de engravidar. 

No ISPA, Ana Alexandra Carvalheira e Joana Bento, mestre em Psicologia, estudaram uma componente dessa vivência dos mais velhos na investigação Comportamentos Sexuais e Bem-Estar no Envelhecimento: Estudo Exploratório numa Amostra de Mulheres. Os comportamentos sexuais das mulheres idosas poderão influenciar os seus níveis de bem-estar? Este foi o ponto de partida. As conclusões foram conhecidas em 2009 e mostram valores mais altos de bem-estar nas idosas que aceitam a sua sexualidade, que se mantêm sexualmente activas, que se sentem enamoradas e apaixonadas, que mantêm interesse sexual. A impotência do parceiro, e não doença própria, foi a razão mais referida pelas idosas para não terem relações sexuais. “A sexualidade nas pessoas idosas depende, essencialmente, do modo como as próprias mudanças do passar dos anos podem ser encaradas, tanto pela sociedade como pelas próprias idosas”, sublinham. Conclusões que resultam de questionários aplicados, um deles sobre comportamentos sexuais, a 100 mulheres com idades compreendidas entre 65 e 69 anos que frequentavam centros de convívio da zona de Lisboa — 39% eram casadas, 39% viúvas, 46% viviam sozinhas e 50% não tinham relação de compromisso nem parceiro sexual. 

Faz-me falta a ternura

Teresa Brandão abre-nos a porta de casa com o seu cão Che ao colo. Não precisa de dizer que é uma mulher viajada. Há recordações espalhadas pelos vários compartimentos do apartamento que partilha com a mãe. Nas paredes, tem fotos, desenhos, pinturas, pratos árabes que trouxe de vários destinos. A primeira pergunta que faz, e que há-de repetir ao longo da conversa, é o que é isso da terceira idade. O corpo não sente o peso da idade. Teresa, 64 anos, não se sente velha e sempre viveu a sexualidade como um complemento de um beijo, de uma carícia. “Não consigo fazer distinção entre sexo e um beijo, não consigo ver diferença nenhuma.” O sexo é uma extensão de várias coisas. “O sexo era importante, como eram os beijos, os abraços, as mãos. Não sexo por sexo.”

É divorciada há 20 anos, tem um filho. Há alguns anos, não mais de dez, que não tem ninguém na sua vida. Está num processo de luto depois de uma separação dolorosa. Lida mal com as perdas, toma medicação e acredita que os comprimidos lhe diminuíram o apetite sexual. “Tive sempre namorados, um a seguir ao outro. Agora faz-me falta uma certa ternura. Sim, é mais a ternura, o aconchego, o dormir encostada a alguém, que me fazem falta”, revela. Corpo com corpo, pele com pele. E não há nada que os substituam. Nada. 

O cão Che e o gato Miró são uma grande companhia. Che mima-a com lambidelas no rosto, procura constantemente o seu colo. Miró dorme encostadinho aos seus joelhos todas as noites, durante o dia anda pelos seus passeios fora ou dentro de casa.

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Teresa Brandão é divorciada há 20 anos. Tem 64 e lança a pergunta: "O que é isso da terceira idade?"

“Não lido bem com o facto de ser deixada. Faço lutos muito grandes e, nessas alturas, fico completamente desinteressada de parceiros”, confessa. Aos 57 anos, namorou com um homem 23 anos mais novo, a quem um dia disse: “Tens de seguir a tua vida, ter meninos, porque daqui por uns anos posso ser uma trabalheira para ti.” Chegou a viver com um companheiro durante dois anos. “Até ao momento em que estávamos sentados no sofá e ele sempre a ver televisão e eu com auscultadores a ouvir uma coisa qualquer.” Percebeu os sinais, que o relacionamento não tinha futuro, colocou um ponto final. Seguiu em frente. 

Não casou virgem, nem pela igreja. Aos 17 anos, estudava Pintura e Escultura nas Belas-Artes no Porto, e um rapaz da Madeira, companheiro de faculdade, pediu-a em casamento. Ele não queria ir para o Ultramar e tinha o plano de fugir com a sua amada para a Bélgica. “Mas, naquela altura, não podia casar sem licença.” A família não consentiu, o namoro não continuou. Teresa sonhava, desde os 20 anos, em ser mãe solteira. Casou-se aos 28 anos só pelo civil com um homem baixinho e charmoso que tudo fez para a “engatar”. Não correu tudo bem, viajaram bastante, mas havia discussões com fantasmas do passado que estragavam o amor. “O divórcio começou no primeiro dia do casamento”, garante. Deixou o curso de Pintura e Escultura aos 17 anos, arranjou trabalho num escritório, decidiu tirar um curso de Secretariado das sete às 11 da noite. Resolveu aprender Alemão e em 1970 fez as malas e partiu para a Alemanha para casa de um tio que era bailarino na ópera de Frankfurt. Um ano depois, voltou com alemão perfeito e uma bagagem cultural avançada para o que era Portugal no início da década de 1970.

Partilha de afectos

Cátia Pires, gerontóloga, escreveu o quinto capítulo intitulado Explore a Sua Sexualidade no Manual de Envelhecimento Activo da UNIFAI — Unidade de Investigação e Formação sobre Adultos e Idosos, lançado há cerca de três anos. Vinte e oito páginas com vários assuntos. Um deles sobre o que devem fazer os mais velhos se não tiverem parceiro. Investir em contactos sociais, não recear a auto-estimulação para satisfazer o desejo sexual, adquirir objectos sexuais, são algumas das sugestões. A gerontóloga aborda os benefícios da actividade sexual (aumenta a auto-estima e o bem-estar); as mudanças no corpo (a vagina diminuiu de tamanho e perde a elasticidade, por exemplo); as alterações psicológicas com o processo de envelhecimento (o homem torna-se mais emocional, a mulher fica mais desinibida e activa); as doenças e impacto na sexualidade; factores sociais e culturais que influenciam a vivência da sexualidade na velhice (educação, nível cultural, influência de amigos e família); e ainda dá conselhos para viver uma sexualidade plena (exercícios para a reabilitação dos músculos pélvicos, compra de lingerie sensual, ver filmes eróticos, descobrir novas formas de obter prazer). Tudo numa linguagem simples e directa. 

“São várias as referências de pessoas que revelam viver uma sexualidade de melhor qualidade na velhice do que na juventude.” E explica por que isso acontece. Os parceiros percebem melhor as necessidades e gostos sexuais, há uma maior experiência a esse nível, a partilha de afectos é mais valorizada, e a vida, à partida, tem menos elementos de stress. “Embora a frequência das relações sexuais possa diminuir, as pessoas mais velhas mantêm-se activas sexualmente e podem, inclusive, descobrir e explorar outras formas de experimentar a sexualidade.” O envelhecimento não é uma barreira. “A sexualidade mantém-se de forma plena e o que vai acontecendo com o tempo não é algo abrupto, as pessoas podem adaptar-se às fragilidades e dificuldades”, refere. Há cerca de seis anos, Cátia Pires estudou a sexualidade de casais idosos que vivem em instituições sociais. “A sexualidade não é respeitada. À partida, dividem homens e mulheres, que passam a dormir em quartos separados, e este tipo de violência acaba por interferir na vida dos casais, que deixam de ter intimidade.” Não que isso seja feito de uma forma deliberada pelos profissionais, mas, na sua opinião, “não há conhecimentos suficientes” para lidar com o tema.

Sexo sem Idade, o documentário

Trinta e três minutos e 34 segundos que revelam, segundo os seus autores, a “perspectiva de pessoas maduras em relação ao sexo, os entraves, os desejos e as fantasias que permanecem e se transformam”. Sexo Sem Idade é um documentário, um trabalho académico, que reúne testemunhos da vida sexual dos mais velhos, realizado por Kátia Ferreira, Lardyanne Pimentel, Pedro Pintalhão, Ariana Caldeira e Catarina Caldas, alunos do Mestrado em Comunicação Multimédia da Universidade de Aveiro. A brasileira Lardyanne, do Ceará, andava a matutar no assunto. Chegou a Portugal e encontrou uma população envelhecida. “População envelhecida que se diverte, que vai aos restaurantes, que anda na rua. Uma actividade forte e uma vitalidade que me indaguei. Será que alguma coisa muda?” 

“O tema foi amor à primeira vista. Começámos a escrever a sinopse, a fazer o guião”, recorda Kátia. Pedro recorda as dificuldades. “Não foi nada fácil avançar com isto. Não é fácil fazer perguntas tão directas.” O arranque foi complicado, ninguém estava disponível para falar, mesmo no anonimato. Lembraram-se de contactar bares de alterne, foram a uma dancetaria num domingo à tarde. Mas as abordagens não resultaram. Instalaram então a câmara na Praça da Batalha, junto ao Teatro São João no Porto, nos mercados do Bolhão e de Matosinhos. Sem castings, sem rede, abordavam quem passava com um guião que se ia adaptando às circunstâncias. Cada momento era único e não havia segundo take. “Não é propriamente um tema vulgar. Havia uma certa ansiedade em saber o que é o sexo em pessoas com mais idade”, comenta Kátia. “Sexo” não era palavra que surgisse no início da conversa. “Usámos a técnica do funil, dar a volta, pedir para falar de amor e não propriamente de sexo para estarem mais à vontade”, lembra Catarina. 

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O documentário Sexo sem Idade não ficou fechado nas quatro paredes da universidade. Foi exibido no Avanca 2013 — Encontros Internacionais de Cinema, Televisão, Vídeo e Multimédia e no 4.º Festival de Curtas-Metragens da Ribeira Grande nos Açores. Atravessou o Atlântico e chegou ao Brasil. Foi exibido no 23.º Cine Ceará — Festival Ibero-Americano de Cinema e por um canal televisivo brasileiro, de sinal aberto, com audiência de oito milhões de pessoas. O que inicialmente seria somente um trabalho académico ganhou dimensão para mostrar que o sexo não tem prazo de validade.

Os cinco alunos, todos na casa dos 20 anos, aprenderam com a experiência. Kátia não esquece. “O grande amor, o amor máximo, atinge-se nessa idade. O que eles nos diziam é que na nossa idade não sabíamos bem o que era o amor.” Ana acrescenta: “Não podemos estabelecer uma idade para deixar de haver sexo.” Lardyanne acabaria por ficar surpreendida com a abertura dos portugueses para falarem do tema com uma câmara à frente, depois das dificuldades iniciais. “O sexo continua e o desejo também.”

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