Desvendado o mistério dos mergulhos longos e profundos dos nómadas do mar

Os bajau mergulham durante muitos minutos e a grandes profundidades só com uma máscara de madeira. Como conseguem? Têm um baço maior do que o das outras pessoas.

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Quase tudo o que os bajau consomem é apanhado no mar Melissa Ilardo
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Os bajau conseguem mergulhar até 70 metros de profundidade Melissa Ilardo
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Bajau com uma máscara de madeira que usa para mergulhar Melissa Ilardo
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Jaya Bakti, povoação na Indonésia, onde vivem bajau Melissa Ilardo

No Sudeste da Ásia há um povo que passa quase toda a sua vida dentro de água. São os bajau, mais conhecidos como os nómadas do mar. Vivem em barcos e fazem turnos de mergulho de várias horas – só com um equipamento tradicional e pequenos intervalos – para apanhar peixe para a família. A prática destes mergulhos já dura há centenas de anos e chegou-se agora à conclusão de que, devido a isso, os bajau têm um baço maior do que o das outras pessoas. A descoberta publicada agora na revista científica Cell pode ajudar a perceber como o corpo humano responde à falta de oxigénio. Tudo graças a estes mergulhadores a tempo inteiro.

Os bajau viajam pelos mares da Indonésia, Malásia e das Filipinas em casas flutuantes. Quase tudo o que comem é apanhado no mar. Por isso, podem passar mais de 60% do dia a mergulhar em busca de alimentos. Usando apenas uma máscara de madeira, mergulham durante muitos minutos. E há relatos que podem mesmo ir até aos 70 metros. Só muito ocasionalmente visitam localidades em terra.

Como é que os bajau se adaptaram a estes longos mergulhos em profundidade? Esta era a questão que Melissa Ilardo, da Universidade de Copenhaga (Dinamarca), queria responder no seu doutoramento. Suspeitava que a resposta estivesse no baço (órgão situado atrás do estômago). Afinal, a contracção do baço é uma parte-chave da resposta ao mergulho de mamíferos como foca-de-weddell, que vai a muitos metros de profundidade, durante vários minutos e tem um baço grande.

Num artigo científico de 1990 na revista Journal of Applied Physiology, também já se tinha mostrado que contracção do baço acontecia com um grupo de mergulhadoras japonesas que recolhe pérolas – as ama. Mesmo assim, os orientadores de doutoramento de Melissa Ilardo disseram-lhe que era um assunto muito arriscado para uma tese e que ela poderia não encontrar nada.

Melissa Ilardo correu na mesma esse risco. Em 2015, visitou uma comunidade na Indonésia e viu como era a vida desses mergulhadores nómadas. E como lhe pareceram bastante interessados em saber mais sobre a sua herança genética, Melissa Ilardo voltou mais vezes com um aparelho de ecografia para medir os seus baços. “Basicamente, apareci na casa do chefe da povoação apenas com um aparelho a fazer perguntas sobre baços”, recorda. Integrou-se na comunidade e são vários os relatos dessa vivência: viu que aprendem a nadar antes de saber andar ou um bajau que lhe contou que fez mergulho de 13 minutos. A cientista recolheu saliva e mediu o baço de 59 bajau, assim como a 34 indivíduos do povo saluan, que são vizinhos dos bajau mas não são mergulhadores como eles.

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Os bajau aprendem a nadar antes de andar Melissa Ilardo

Concluiu-se então que o baço dos bajau tem cerca de 160 centímetros cúbicos. “É cerca de 50% maior do que o dos seus vizinhos, os saluan”, salienta ao PÚBLICO Melissa Ilardo.

O tamanho do baço é importante devido ao papel que tem durante o mergulho. Quando mergulhamos, o nosso coração bate mais devagar e os vasos sanguíneos nas extremidades contraem-se. Por isso, o baço também se contrai, libertando glóbulos vermelhos mais oxigenados e deixando mais oxigénio disponível na corrente sanguínea. “Um baço maior significa que é libertado mais oxigénio”, frisa-se num comunicado da Cell sobre o trabalho. Já num comunicado da Universidade de Cambridge (Inglaterra), que também teve um investigador envolvido no estudo, acrescenta-se que poderá haver um aumento de 9% de oxigénio, permitindo assim que o tempo do mergulho se prolongue.  

Super-humanos entre nós

“Os humanos são bastante plásticos. Podemos adaptar-nos a diferentes ambientes extremos só com mudanças no nosso estilo de vida ou mudanças comportamentais”, considera Melissa Ilardo. Contudo, o tamanho do baço não é só uma resposta plástica ao facto de os bajau passarem mais tempo dentro de água. Há já algo diferente no seu ADN.

Além de analisaram genomas dos bajau, os cientistas também os compararam com genomas dos saluan e do grupo han (da China). Identificaram 25 zonas do genoma significativamente diferentes entre os bajau e os outros dois grupos. E destacam sobretudo a zona onde está o gene PDE10A, que está relacionado com o tamanho significativo do baço dos bajau. Por exemplo, nos ratinhos, este gene é conhecido por regular uma hormona da tiróide que controla o tamanho do baço. “Acreditamos que os genes dos bajau sofreram uma adaptação que aumenta uma hormona da tiróide e, portanto, aumenta o tamanho do baço”, considera Melissa Ilardo no comunicado.

“A probabilidade de encontrar provas da selecção natural numa população é bastante pequena. É muito empolgante encontrá-la”, diz a cientista, acrescentando que é difícil saber exactamente quando esta adaptação ocorreu na história evolutiva deste povo. E quais as consequências destes mergulhos longos e profundos nos bajau? “Não sabemos quais são os efeitos a longo prazo”, assume Melissa Ilardo. 

Estes resultados podem ainda ter implicações na investigação médica, porque ajudam a perceber como o corpo humano responde à falta de oxigénio. Por exemplo, pode ter um papel importante na doença pulmonar obstrutiva crónica ou em cirurgias. Para que isso seja possível, a equipa disponibiliza os dados deste trabalho para que outros cientistas possam aplicá-los na sua investigação.

O próximo passo no trabalho de Melissa Ilardo será perceber a ligação entre a genética, o tamanho do baço e as capacidades de mergulho deste povo. A cientista pensa que, a partir da sua investigação, se pode saber mais sobre a selecção natural nos humanos actuais. “Penso que [os bajau] são quase como super-humanos que vivem entre nós com estas capacidades realmente extraordinárias. Mas também que a selecção natural é algo mais poderoso do que pensamos, e talvez devêssemos procurá-la em mais lugares.”

Mas, antes de tudo isto, planeia voltar à Indonésia por outros motivos: explicar os resultados deste estudo ao bajau. “São exploradores. Têm uma curiosidade intrínseca e querem saber mais sobre o mundo, incluindo sobre a sua própria biologia.”

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