Entre os milhões de documentos à guarda do ITS – International Tracing Service, em Bad Arolsen, há apenas um processo relativo a uma criança identificada como tendo nacionalidade portuguesa. Renate Bröker, que há 20 anos procura encontrar o fio à meada de tantas famílias desfeitas pela II Guerra Mundial, passeia os olhos pelo escasso processo deste rapaz supostamente português, com 12 anos no final da guerra, e que pediu para ser realojado em França, porque não tinha já parentes vivos. O seu nome, tal como aparece nos vários registos do ITS, é Günther Rigent.
Günther Rigent está longe de ser um nome português, mas o que fazer quando é o próprio rapaz a garantir que é essa a sua nacionalidade? Em todo o curto processo de Günther, os únicos nomes que aparentam ser, de facto, portugueses são Victor, descrito como um nome de família, e Paula, o nome da mãe da criança, mas os dados compilados pelos serviços britânicos responsáveis pela investigação das origens do menino, afirmam que a sua mãe era polaca. O pai do menino é apresentado como tendo o mesmo nome do filho: Günther Rigent.
O que Günther contou aos britânicos no campo para deslocados em Zehlendorf, perto de Berlim, onde se encontrava, em 1946, foi que era, efectivamente, português e que nascera em 1933. Renate Bröker vai fazendo desfilar no ecrã do computador os documentos originais guardados pelo ITS e nos quais se pode ler que Günther nasceu a 7 de Maio de 1933 “num barco a motor entre a França e a Holanda”. O menino forneceu dados sobre os pais, garantindo que ambos tinham morrido no campo de concentração de Buchenwald, para onde tinham sido levados.
“Diz que foi apanhado pelos alemães enquanto o seu pai ia de Portugal para França, em 1942. Depois foi levado com os pais para o campo de concentração de Buchenwald”, vai lendo Renate em voz alta. Os documentos referem ainda que o pai, cujo nome também seria Günther Rigent, e que era operador de um barco a motor, morrera no campo “algures em 1944”. O destino da mãe era mais preciso: “Assassinada a 7 de Maio de 1943”, lê-se nos registos.
“Neste caso, foi a própria criança que contou a sua história. Às vezes, as crianças eram muito pequenas e perguntava-se a outras pessoas se sabiam algo sobre as suas origens e a sua família, mas neste caso, não”, explica a investigadora do ITS.
Os últimos registos dos britânicos indicam que Günther pediu para ser transferido para França, uma vez que já não tinha quaisquer parentes vivos. Esse, portanto, terá sido o seu destino. “Este é o único caso de uma criança portuguesa que conseguimos encontrar”, diz Renate Bröker, antes de expressar com um sorriso incrédulo: “Estou aqui há 20 anos e nunca tive um inquérito feito por Portugal.”
O caso de Günther Rigent não é o único a suscitar dúvidas sobre a nacionalidade de vítimas dos campos de concentração registadas como portuguesas. Na base de dados do Yad Vashem (o centro israelita para a investigação e memória do Holocausto), estão identificados 18 casos de pessoas mortas durante o Holocausto, alegadamente, com nacionalidade portuguesa. Está lá Michael Fresco, mas o seu caso aparece repetido, uma vez como Michael Fresco outra como David Fresco. Está lá também Rachel Basista, cujo registo de nascimento, em Lisboa, a 19 de Outubro de 1928, existe efectivamente. De acordo com o Yad Vashem, Rachel, com apenas 13 anos, foi deportada para Auschwitz a partir da Bélgica, onde vivia, e morta no campo de concentração na Polónia.
Mas a Comunidade Israelita de Lisboa não tem qualquer registo de nascimento dos outros cinco judeus que supostamente terão nascido na capital portuguesa. Em outros cinco casos, apesar de listados como portugueses, os países de nascimento apontados são a Alemanha, Polónia, Checoslováquia e Roménia (2). Nestes casos, pode-se supor com alguma segurança que estaremos a falar de judeus que conseguiram papéis de identificação portugueses, na tentativa de escapar aos nazis. Mas, mesmo nos casos em que o local de nascimento apresentado é Lisboa, é preciso ter reservas. Como acontece com Giuseppe e Guglielmo Levi.
A base de dados da Yad Vashem indica que Giuseppe nasceu em Lisboa, em 1872, e que Guglielmo, seu filho, nasceu na mesma cidade, apresentando ambos nacionalidade portuguesa. No entanto, num outro registo da mesma base de dados, obtido através de uma fonte diferente, Guglielmo aparece como tendo nascido em Milão, Itália. A versão correcta é a segunda, como confirmou à Revista 2, por email, o seu sobrinho, Ugo del Monti, professor reformado de Patologia na Universidade de Milão. Ugo é também neto de Giuseppe Levi.
“Giuseppe Levi nasceu em Joanina, Grécia, em 1874”, começa por esclarecer o professor. Giuseppe e a mulher, Speranza, foram pais de Anna (mãe de Ugo), Samuele (também nascido na Grécia, em 1907) e Guglielmo, que já nasceu em Milão, a 19 de Dezembro de 1910. “Eles eram verdadeiramente gregos a viver aqui, em Milão. Contudo, possivelmente no início da guerra, tiveram a oportunidade de, a juntar ao seu passaporte grego, conseguirem um passaporte de Portugal, país que, tanto quanto sei, nunca visitaram na vida”, acrescenta Ugo del Monti.
Os documentos terão sido conseguidos graças às excelentes relações que a família mantinha com o consul português em Milão. Supostamente, Ugo refere-se ao cônsul honorário Giuseppe Agenore Magno, que, apesar de ter sido destituído em 1940, por Salazar, por passar vistos sem autorização a judeus, terá continuado a exercer as suas funções. Ugo diz que o tio, Samuele Levi, “foi mesmo apontado como cônsul honorário de Portugal” durante a guerra e que “para escapar aos bombardeamentos aéreos de Milão, o consulado de Portugal foi transferido para a casa de campo da família, em Moltrasio [Lago Como]”.
Ugo recorda-se, por isso, de ver o cônsul português por lá e essa proximidade levou a uma falsa sensação de segurança, com as piores consequências. “Ao final do dia 26 de Outubro de 1943, os nazis entraram no consulado e prenderam Giuseppe Levi, os seus filhos Samuele e Guglielmo e o seu genro, o meu pai, Luigi del Monte. Todos eles foram levados para [a cadeia de] San Vittore, em Milão. O meu pai foi deportado directamente para Auschwitz, enquanto o meu avô e os seus filhos foram mantidos em Fossoli durante alguns meses e depois deportados. Nenhum deles regressou”, conta. Fossoli era, durante esta época, um campo de internamento e deportação italiano para judeus, por onde também passou o escritor Primo Levi.
Ugo, a sua irmã Mirella (que haveria de emigrar para Israel) e a mãe de ambos conseguiram fugir aos nazis, chegando à Suíça a 3 de Dezembro de 1943.
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