Em 2025, o Festival de Cannes deixou de tolerar acusações de violência sexual

O banimento de um actor secundário e o afastamento do vice-presidente da secção pararela ACID, um acusado de violação, o outro de violência sexual, sinalizam uma mudança de política na Croisette.

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Estreia de Dossier 137, de Dominik Moll, não contou com a presença em Cannes do actor secundário Théo Navarro-Mussy, sobre o qual pendem acusações de violência sexual Benoit Tessier/epa
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Foi em 2018, no último dia de festival. A cerimónia de encerramento decorria há meia hora quando a actriz e realizadora italiana Asia Argento discursou. Contou que ali mesmo, em Cannes, fora violada aos 21 anos por Harvey Weinstein – “este festival era o seu campo de caça”, acusou. Não referiu apenas o caído em desgraça Weinstein. “Entre vós na plateia, há aqueles que ainda não foram responsabilizados pelo seu comportamento em relação às mulheres”, lançou, antes de concluir: “Não permitiremos que vivam em impunidade”. Sete anos depois, o Festival de Cannes parece ir ao encontro das palavras de Argento.

Até 2025, o procedimento oficial passava por, mesmo perante a existência de acusações ou denúncias de assédio e violência sexual, não tomar qualquer medida relativamente aos acusados caso os processos judiciais em que se envolvessem estivessem concluídos ou caso não tivessem resultado em condenação dos tribunais. Que algo mudou, é evidente. Atestam-no dois casos ocorridos durante esta edição do festival.

Primeiro, dia 15 de Maio, o actor Théo Navarro-Mussy, que desempenhava um papel secundário em Dossier 137, de Dominik Moll, foi informado que estava proibido de aceder à passadeira vermelha, caso tivesse intenção de assistir ao filme. Segundo noticia o El País, foi a primeira vez que o festival tomou tal decisão relativamente a alguém acusado de violência sexual. Navarro-Mussy foi acusado de violação por três ex-companheiras. O caso foi rejeitado por um tribunal em Abril, mas as três mulheres iniciaram novo processo. Desta vez, isso foi suficiente para banir Navarro-Mussy de Cannes.

Tal como foi suficiente a acusação de actos de violência sexual que uma mulher fez a Reza Serkanian, vice-presidente da secção ACID do Festival de Cannes. No mesmo dia em que a acusação foi tornada pública, esta quinta-feira, durante uma sessão dedicada ao tema do machismo e da violência sexual, o ACID emitiu um comunicado em que anunciava o afastamento de Serkanian da direcção do festival.

Como pano de fundo desta mudança está o desfecho de um caso que correu mundo: a condenação de Gérard Depardieu a 18 meses de pena suspensa, pela agressão sexual a duas mulheres, membros da equipa de rodagem de Les Volets Verts, de Jean Becker, rodado em 2021. A condenação daquele que é considerado o maior actor francês vivo, tido como monumento intocável, como que sinaliza a mudança por que passa o cinema e o mundo das artes francesas no que diz respeito à cultura machista e à violência de género.

“A constatação é clara: a violência sexual no cinema, no teatro, na dança e na música é endémica e sistémica.” Foi com estas palavras que, a 9 de Abril, a deputada Sandrine Rousseau resumiu as conclusões de uma comissão parlamentar francesa dedicada a investigar a violência sexual no meio artístico do país. É como que um despertar francês, ao qual Cannes não ficou alheio. Despertar tardio, segundo alguns. No arranque de festival, perguntaram por Gerard Depardieu e pelo movimento MeToo​ à presidente do júri, Juliette Binoche. “Demorou tempo a chegar”, respondeu a actriz.

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