Amor firme à primeira vista

1. Em 2012, uma lisboeta de 29 anos comprou um bilhete de avião para o Brasil. Nunca tinha estado lá, nem havia qualquer relação familiar. Apenas queria mudar de vida, continuar a estudar fora, e algo a chamava para ali, embora ela não soubesse bem o quê. Fizera História em Lisboa, Dança em Paris, trabalhara com performers, artistas e investigadores, acabava de conseguir uma bolsa da Gulbenkian para o mestrado fora. Comprou, pois, o bilhete de avião. E já o tinha, e tinha tudo isto na cabeça, quando, em Lisboa, conheceu uma performer carioca que tinha vindo fazer um trabalho. Foi “amor à primeira vista”. 

2. As palavras são dela, a lisboeta, na conversa que tivemos esta semana por Skype, eu no Alentejo, ela no Rio de Janeiro. Dois anos depois, está casada com a sua carioca, casamento de cartório e festança, e um dia destes vão ter um bebé. Mas a razão por que conversámos no Skype agora, e eu estou a escrever esta crónica, é a inauguração, no próximo sábado, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, da instalação-performance que resulta de tudo isto, um encontro entre Portugal e Brasil, que é o encontro entre a portuguesa Rita Natálio e a brasileira Joana Levi.

3. Não sei se alguma vez aconteceu uma tese de mestrado ser, além de dissertação escrita, uma instalação ao longo de um mês num grande museu nacional, uma performance diária nos primeiros dez dias da instalação, uma arqueologia dos 500 anos de relação entre Portugal e o Brasil, e a expressão pública de um amor que desde então levou tudo avante, fundindo a vida de ambas: trabalho, família, amigos, burocracia. No dia em que falei com a Rita no Skype, ela tinha acabado de receber o seu visto de residente permanente por ter casado com uma brasileira, e a ambas, ela e eu, parecia um feito épico que, tendo ela pedido o visto em Maio, já o tivesse na mão. Para quem conhece a burocracia luso-brasileira, em particular o calvário dos vistos, só isto já seria de festejar.

4. A instalação chama-se Museu Encantador e reúne doações de 17 artistas visuais, performers, pesquisadores e filósofos, entre os quais a artista e escritora carioca Laura Erber, o artista pernambucano Paulo Bruscky, a psicanalista paulista Suely Rolnik, a cantora e compositora carioca Letícia Novaes e portugueses como a realizadora Rita Brás, o investigador André Lepecki, o actor e encenador André Teodósio e os coreógrafos Ana Borralho & João Galante. Todos foram “convidados a realizar diálogos sobre noções pessoais de encantamento e história cultural, formando uma teia de encantos que ligam Brasil e Portugal”, o que deu origem a um conjunto de vídeos, sons, objectos e textos. Rita e Joana pediram depois ao artista brasileiro Eduardo Verderame que pensasse na forma de ligar tudo isto, e ele concebeu uma trama com canos de esgoto. Nos primeiros dez dias, Rita, Joana e a bailarina portuguesa Teresa Silva fazem a performance dentro da própria instalação, primeiro vestidas de exploradoras coloniais, com “um humor à Jacques Tati”, depois tirando e pondo roupas, o que permite que surjam cruzamentos entre lenços minhotos e botas de cangaceiro ou cocares índios. “Trata-se de elaborar um pensamento sobre a colonização, descolonizando o pensamento”, dizem elas no press release do MAM. “É preciso não temer os clichês. Tocar os vestígios, analisar o pó debaixo dos tapetes e abraçar essa estranha mistura de vivo e morto que os museus nos apresentam. Apesar de ser pensada para hoje, é uma performance com muitos fantasmas.” 

5. De onde vem a ideia de encantamento? Da chegada de Rita ao Brasil, actualizando o espanto de Pêro Vaz de Caminha. “Era a perturbação de uma cultura que parece que não vem do passado nem do futuro”, diz ela no Skype. “É um espelho mas não é um espelho, e tudo isso gira à volta do corpo. Podemos fazer um estudo sobre a arquitectura ou a música, mas onde aquele mundo, aquela cultura tem impacto é no corpo, nas relações. Como se o teu corpo carregasse uma memória que não sabe que tem. No meu caso, não me foi passada pelos pais, pelos avós, nem pela escola. Eu só comecei a aceder a essa memória aqui. Por isso dizia que estava encantada, no sentido que o encantamento tem no Pará.” 

6. No Pará, há o mito do boto (o golfinho local) que encanta as mulheres, e a fabulosa paisagem de Alter-do-Chão, com as suas florestas imersas, foi um dos lugares em que Rita e Joana estiveram durante a preparação de Museu Encantador. Mas além da Amazônia, a instalação inclui também vídeos, fotografias e entrevistas feitas por elas em Recife, Natal, Curitiba e São Paulo, onde também aconteceram oficinas e conversas públicas sobre o projecto. Rita lembra a mistura entre os mitos locais e os mitos da Igreja Católica nas conversas em Alter-do-Chão. Uma confluência que vem desde o começo, antes ainda de a língua portuguesa ter vingado, porque a imposição do colonizador começa aí. “Lemos a carta de Pêro Vaz e ele está siderado com a visão, depois rezam a primeira missa e no dia seguinte já se trata de evangelizar, simplificando o outro”, diz Rita.

7. Mas mais do que “terapia colonial”, ela prefere falar em “erótica colonial”, “todas estas pessoas, portugueses e brasileiros, a pensarem ao mesmo tempo a relação”. Rita e Joana também distorceram bem a expressão “a minha esposa”, depois de casarem. Preferem “a minha esponja”. De resto, Joana casou no cartório de cocar.

8. Estes dois últimos anos, moraram entre Rio de Janeiro e São Paulo, mas Rita tem saudades de muitas coisas em Lisboa, a começar pela tranquilidade de ler em frente ao Tejo, ou passar uma tarde a trabalhar num café. Não se habitua, como dificilmente um português se habitua, à equação brasileira de ou viver com medo ou viver num mundo de segurança que é fora do mundo. Então, a ideia é morarem com um pé lá outro cá, como se o museu do encantamento não acabasse, e porque havia de acabar. O futuro dos últimos 500 anos só pode estar numa firmeza do amor, e penso sempre na Rita como a mais moicana das portuguesas, com uma força que vem da raiz do cabelo.

Foto
Casamento de Rita Natálio e Joana Levi Leonardo Ventura

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