Diz uma história (incompleta e lendária) que o cinema foi inventado por dois irmãos cujo nome predispunha à captura da luz. E, na verdade, o cinema viria a tornar-se organicamente cinema graças a olhares de chama e de brasa, a rostos irradiando luz e a outros mergulhados na escuridão, à revelação inesperada de inúmeras faces da terra e da humanidade. Esse devir prolongar-se-ia por infindáveis futuros do passado, pois que, conquistando para si novas formas de mundo e matérias de fundo, o cinema nunca parou de ser inventado.
Neste nosso país de obscurantismos intermitentes, por vezes rompido pelo rasgo de alguns artistas latu sensu, a inquietação no que diz respeito ao papel da luz no cinema, tanto numa vertente de memória como numa perspectiva visionária, é um dos traços singulares de Acácio de Almeida — um director de fotografia ligado a todos os mestres da cinematografia portuguesa, ao CPC e respectiva filmografia, à importante cooperativa Zero e a algumas obras realizadas por cineastas estrangeiros prestigiados.
Oriundo dum território de interioridades e fracturas expostas (S. João da Pesqueira, 1938), Acácio de Almeida faz o seu tirocínio nos anos que precedem o 25 de Abril. A revolução, enquanto tempo de fissuras nas formas, permite-lhe sofisticar um estilo pessoal que alia o rigor da austeridade e a sensualidade do despojamento à leveza da improvisação. Em filmes tão radicalmente diferentes quanto Brandos Costumes, de Seixas Santos, Máscaras, de Noémia Delgado, Ana, de Reis & Cordeiro, Silvestre, de César Monteiro ou Agosto, de Silva Melo, Acácio de Almeida afirma uma opção estética que se situa no terreno da escuta do visível onde a luz é protagonista e antagonista. No início dos anos 80, Acácio de Almeida é já um director de fotografia conceituado. De então até agora, o reconhecimento do seu talento e uma agenda a abarrotar não o desviaram do gosto pela invenção sem ostentação dos meios, pela recriação do que existe enquanto resistência. Sem bandeiras mas com asas.
Ouvir Acácio de Almeida é perceber que no cinema está contida a possibilidade de uma arte da luz que o transcende, uma busca de formas libertas da matéria dramática. Falar dos seus filmes é, para Acácio de Almeida, fazer uma peregrinação, voltar a percorrer sendas que ele próprio desvendou.
“A minha terra natal era agreste, endureceu-me o coiro.” “O talento de mãos associado ao olhar vem-me dum tempo em que, com um canivete e madeira, fabricava os meus brinquedos imitando objectos do quotidiano.” “O trabalho com a luz acordou-me.” “Busco a identidade da luz. Se já fiz uma coisa, não a repito a não ser para aperfeiçoar algo que ficou aquém.” “A transfiguração da luz dá-se bem com a humildade de quem a pratica.” “O director de fotografia cria um canal directo de contacto com os actores donde resulta a confiança que permite uma espécie de dança.” “Há sombras que chegam a mim, memórias desmembradas do olhar. O meu trabalho — remember — é distribuir a luz, reorganizar as vivências, com convicção mais do que com verdade.” “Procuro as frinchas. O olhar entra em conflito com o momento, a memória entra em dialéctica com o que se quer contar e o modo de o fazer.” “No vazio não há (percepção humana da) luz. Só reflectida, materializada, ela se torna visível.” “A luz não é só um fenómeno ondulatório que dá a ver, mas também uma instância espiritual.” “Não sei onde estão os limites da luz. Se não formos paralisados pela dúvida, não ficamos impotentes. A inconsciência permite-nos, se fizermos o que queremos e sentimos, abrir caminhos. O limite é apenas o peso, o tamanho e a estrutura das matérias com que trabalhamos.” “O pintor põe a pincelada de luz onde quer. Pode haver uma lógica da luz, mas não é indispensável.” “A luz está em tudo. É ponto de partida e de chegada. O que é, donde vem, para onde vai?, eis as perguntas que ela suscita, quando pretendemos entender o que mantém a matéria em equilíbrio.”
Aliando a modéstia ao improviso, o maravilhamento diante do que existe ao desejo de transfigurar, a vontade de mostrar ao talento de esconder, a luz de Acácio de Almeida arranca actores e adereços, seres e coisas ao cenário, sem apagar a paisagem, sem menorizar a força cenográfica daquilo que envolve a acção. Se as suas imagens têm um travo a contemplação, ele decorre, não de um artifício ad hoc, mas sim do saber de quem olhou muito e muito viu. O seu fazer artesanal acrescenta aposentos e andares à casa oculta do mundo. A insatisfação de artista obriga-o a derrubar os limites da sua arte. Possa quem pode conceder-lhe os meios de prosseguir uma pesquisa que a todos diz respeito porque a todos ilumina.
Regina Guimarães, aka Corbe, tem, a par da poesia, desenvolvido trabalho em inúmeras áreas, inclusive da crítica cinematográfica, do argumento e da produção de filmes, do vídeo ensaístico. Foi docente da FLUP, na ESMAE e na ESAD. Foi directora da revista de cinema A Grande Ilusão, fundadora da Associação Os Filhos de Lumière, programadora do ciclo permanente O Sabor do Cinema no Museu de Serralves. Tem orientado inúmeras oficinas de escrita e de iniciação ao cinema
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