Será, então, culpa dos telemóveis? Das mensagens rápidas? Da informática? Será que de tanto suprimirmos acentos para poupar tempo deixámos de saber usá-los? A hipótese não é descabida, mas é melhor culpar o desleixo. Os telemóveis e computadores têm acentos para quem os queira ou saiba usar, a pressa não justifica nada, mas é de notar que em muitos textos que por aí circulam, públicos ou nem tanto, lemos “pais” por “país”, “politica” (do verbo politicar) por “política”, etc. E tais descuidos não pensem que só os encontram em jovens apressados ou principiantes da escrita. Praticam-no, regularmente, políticos, magistrados e até catedráticos. Aliás, era curioso ver a tal PAAC entregue a cada um dos membros do Governo (deste ou dos anteriores) e pesar depois o resultado. Descontando o Acordo, teríamos belíssimos exemplos.
Mas voltemos à ortografia, esse bicho que nos corrói a escrita e o juízo consoante os mandantes de cada época. Imaginemos, por um momento, que os doutos avaliadores de hoje tinham pela frente um texto assim: “O Brazil recebêra o impulso de Portugal, e conjunctamente com a mãe patria proclamára a liberdade.” Chumbado, claro. Acentos a mais, outros a menos, vogais em excesso ou trocadas. Ou este: “Pois se Deos não quiz que a sujeyçaõ de Portugal a Castella fosse perpetua, porque haõ de querer, & porfiar os homens, em que o seja?” Chumbadíssimo, por maioria de razão avaliadora. Ora experimentemos este: “Sperae! Cahi no areal e na hora adversa / Que Deus concede aos seus/ Para o intervallo em que esteja a alma immersa/ Em sonhos que são Deus”. Como não chumbá-lo, de tão estranhas as palavras usadas? Ah, mas não viram tudo. “Passa o vento os do portico da igreja/ Esculpidos umbraes: correndo as naves/ Sussurrou, sussurrou entre as columnas/ De gothico lavor: no orgam do côro/ Veiu, emfim, murmurar e esvaecer-se.” Pesado chumbo, em tão emaranhada escrita. Tentamos este: “Pois que direy daquelles que em delicias,/ Que o vil ocio no mundo traz consigo,/ gastão as vidas, logrão as divicias,/ Esquecidos de seu valor antigo:/ Nascem da tyrania inimicicias,/ Que o povo forte tem de si inimigo,/ Contigo Italia fallo, já sumersa/ Em vícios mil, & de ti mesma adversa.” Como não chumbá-lo, hã? Arrisquemos ainda este, a fechar o exercício: “(…) se o padre Bartolomeu de Gusmão fosse santo, seria um sinal do céu, Que é ser santo, senhor Escarlate, Que é ser santo, Blimunda.” Pontuação errada, fala desconexa. Chumbe-se, claro!
Pois bem: se este episódio fosse verdadeiro, teriam acabado de chumbar, nas suas ortografias originais, Almeida Garrett, Padre António Vieira, Fernando Pessoa, Alexandre Herculano, Luis Vaz de Camões e até mesmo Saramago. Mas se foram Camões, Vieira ou Herculano quem moldou a língua portuguesa na modernidade, como se explica que a sua escrita (não as suas “actualizações” ao sabor das modas ortográficas) seja para a quase totalidade dos portugueses estranha? Explica-se de forma simples: cada ortografia procura esconder as anteriores, como se fossem erro ou crime. Em lugar de dar instrumentos aos aprendizes da língua para nelas se embrenharem, tirando prazer dessa descoberta, anulam-nas como se nunca tivessem existido. Mal comparado, seria como ouvir hoje Bach, Beethoven ou Mozart apenas com instrumentos electrónicos. Chumbem Vieira, Pessoa ou Camões: os chumbados sereis vós.
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