E viveram amargurados para sempre

Descobri uma pasta com papéis da maternidade onde a minha filha nasceu. No meio de instruções para pais de recém-nascidos, estava o certificado de habilitações de Escritor de Literatura Infantil, que toda a gente que tem um filho recebe automaticamente quando faz o registo da criança. De maneira que comecei ontem a escrever uma colecção de livros infantis. Terminei-a hoje de manhã, que isto de escrever para crianças é muito fácil.
A literatura infantil hodierna gira toda ela à volta de formas de encorajar comportamentos positivos das crianças através da argumentação lógica. O que é um paradoxo. Persuadir crianças com recurso à argumentação lógica é como pescar atuns com recurso à solicitação educada. Na minha obra proponho uma nova abordagem.

O primeiro livro chama-se É melhor lavar os dentes, Carolina! É a história da Carolina, uma menina que não gosta de lavar os dentes e fica cheia de cáries. Noutros livros, a Carolina perceberia que as dores de dentes são desagradáveis e começaria a lavar os dentes. Só que isso durava o quê? Uma semana? Ia voltar à preguiça. Na minha história, não: o hálito da Carolina torna-se tão repugnante que, ao cheirá-lo, a mãe desmaia e bate com a cabeça na esquina da mesa, acabando por falecer. Consumida pelo remorso, Carolina passa a dar importância à higiene oral, vindo a tornar-se dentista.

O segundo livro é De certeza que em vez desse gelado não preferes comer a sopa, João? e conta a história do João, um rapaz com uma alimentação toda ela à base de doces. É muito gordo e a mãe, de tanto o pegar ao colo, tem uma hérnia. Um dia, ao atravessar a rua, a ciática prende-lhe a perna. Fica paralisada na estrada e é atropelada, acabando por falecer. Consumido pelo remorso, João passa a dar importância à alimentação, vindo a tornar-se nutricionista.

O terceiro tomo, intitulado Já te mandei para o banho, Tomé!, relata a má relação que o Tomé tem com a água. Um dia, um percevejo de 3kg que habita na cama dele ataca a sua mãe. Ao fugir, desequilibra-se e cai da janela, acabando por falecer. Consumido pelo remorso, Tomé passa a dar importância ao asseio, vindo a tornar-se gerente de uma perfumaria.

Segue-se o Por favor, Rita, já pedi 20 vezes para me ires buscar o jornal lá dentro!, em que, por não ler o jornal, a mãe não sabe que há greve de metro, chega atrasada ao emprego e é despedida. A mãe da Rita envereda então pelo alcoolismo e desenvolve uma cirrose, acabando por falecer. Consumida pelo remorso, Rita passa a dar importância aos pequenos favores que lhe pedem, vindo a tornar-se militante de uma juventude partidária.
Termino com Se faz favor também se usa, Jaime! Nesta história, talvez a mais pessoal de todas, o Jaime teima em não ser educado. Um dia em que se farta de pedir coisas sem usar “se faz favor”, a cabeça da mãe explode, acabando por falecer. Consumido pelo remorso, Jaime passa a dar importância à cortesia, vindo a tornar-se prostituto de luxo.

A pedagogia tem muito a aprender com o sentimento de culpa e o medo da orfandade. Só me falta arranjar um ilustrador.

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