Ian Bostridge

Acredito que Schubert possa ter morrido mais cedo comovido pela tristeza depois de haver escrito o ciclo de canções Winterreise. Alguém o afirmou e podemos concebê-lo facilmente. Padecendo de sífilis, abateu aos trinta e um anos de idade, deixando largas centenas de canções e um grande número de outras peças que o colocam como génio na constelação dos compositores do mundo.

Ouvi primeiro o ciclo Winterreise nas versões perfeitas de Dietrich Fisher-Dieskau, barítono que trabalhou exaustivamente o reportório de Schubert e que nos assombra com a sua colocação densa, austera sem ser violenta, apenas tensa, sempre usando a voz como coisa que se impõe, sem ligeireza, nunca com ligeireza. Fisher-Dieskau canta como se cantar tivesse de ser uma pressão medida, um esforço, ainda que dotado de beleza, mas nunca exactamente delicado e sempre inequivocamente um esforço. Tinha uma graça viril. Eu, como creio que todos os ouvintes das canções de Schubert, venero o senhor Fisher-Dieskau. Por outro lado, tenor, Ian Bostridge revê Schubert numa dolência aumentada, uma certa solenidade com maior compromisso, como se inevitavelmente se vulnerabilizasse ao que canta. Mantém uma austeridade bastante, uma virilidade bastante, mas compadece-se mais, como se revelasse melhor o desamparo de que fala o ciclo Winterreise. Como se pudesse também morrer aos trinta e um anos de idade, comovido pela tristeza. Eu, como creio que todos os ouvintes das canções de Schubert, venero o senhor Bostridge.

Ian Bostridge vem de publicar na Faber & Faber um volume chamado Schubert’s Winter Journey – Anatomy of an Obsession. São quase quinhentas páginas de maturação da experiência de ouvir e interpretar aquele ciclo de canções. A oportunidade é preciosíssima para que melómanos de todas as sensibilidades possam aceder à oficina intelectual e sentimental em torno da escolha de um reportório. Bostridge é de uma clarividência excepcional. Expõe-nos a sua visão da obra de Schubert com um rigor que apenas a paixão atinge, quero dizer, com uma coloração que apenas quem experimenta a paixão pode conceber.

O ciclo Winterreise, inicialmente de doze canções e, posteriormente, de vinte e quatro, tem por base uma série de poemas de Wilhelm Müller. Com um sujeito poético indefinido, sem um enredo propriamente dito, os textos são marcados por uma melancolia profunda, num sentido de desistência sem desespero, como uma reflexão frontal acerca do vazio e do abandono. Para Schubert, já adoentado, esta travessia do Inverno haveria de ser a entrada num tipo de canção até então desconhecida. Uma certa dolente beleza que se instala muito lentamente, como ele terá dito aos primeiros ouvintes e amigos: começariam por desgostar ou desentender, haveriam de aprender a amar. Winterreise é isso, um percurso de escuridão de onde apenas muito paulatinamente se destila o feixe de luz.

Sabemos bem como os grandes intérpretes precisam de estudar as peças para que lhes concedam profundidade e veracidade. O que acontece com Bostridge e o ciclo Winterreise, que interpreta há mais de trinta anos, é exemplo da força absoluta da arte. A reflexão, a implicação de cada coisa com a formação e com a personalidade, o modo como nenhum tempo é suficiente para a certeza mas apenas para a defesa de uma escolha, é-nos explicado endemicamente. A música, a poesia, o tempo e a expectativa pousam na nossa mão. Lemos como quem vê a música acontecer. Sentimo-nos convidados para uma terra de gigantes, onde os nomes evocados são já da mitologia do mundo.

Bostridge, cuja magistral interpretação de Schubert será a mais importante de entre todos os cantores vivos, usa o mesmo modo sincero no texto que lhe reconhecemos na voz. A erudição nunca lhe retira a capacidade de acolher o leitor, acima de tudo integrando-o, como se pudesse mesmo explicar-se a quem nunca o ouviu ou a quem nunca ouviu Schubert. Este livro é um tratado acerca da disciplina de cantar. Não que aborde técnicas e outras habilidades para cuidar de notas ou timbres. Este é um tratado acerca do mais complexo capital de um cantor, a inteligência emocional que dota a interpretação de conteúdo. Passamos pelas palavras de Bostridge igual a quem assiste à explicação mais científica para o lado menos científico da vida. Somos expostos ao edifício mental e amoroso da arte. Um exuberante e sólido edifício.

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