Letra de médico

Periodicamente surgem estudos de carácter científico que validam a ideia que escrever à mão é absolutamente fundamental para o desenvolvimento das crianças. Ou que é essencial para a formação dos indivíduos. Ou que ajuda na aprendizagem de línguas, no decorar de conceitos, na expressão das ideias ou no estimular das conexões cerebrais. Ou até que desenvolve músculos e articulações.

As teses são as mais diversas e todas vão no sentido de que escrever manualmente traz imensos benefícios. E no entanto escrever à mão, seja cartas, relatórios ou trabalhos escolares está em desuso. Nas salas de aula os cadernos de apontamentos deixaram quase de fazer parte da decoração, substituídos pelos computadores portáteis.

A caligrafia exige concentração e disciplina, mas ao lado da rapidez e eficácia do computador parece não existir muito a fazer. Bem podem os cientistas proclamar que a escrita à mão ajuda a desenvolver o pensamento lógico, a capacidade de abstracção ou a sistematização do conhecimento, que a larga maioria da população continuará a preferir os teclados dos computadores ou dos iPhones.

Parece um movimento irreversível. Existem até países onde se discute a opção de tornar facultativa a escrita à mão nas escolas, com o argumento que a maior parte já quase não pega em papel e caneta, ao mesmo tempo que se advoga que a letra de forma pode ser lida por todos, ao contrário da escrita cursiva, cuja qualidade se vai degradando. Ou seja, um dia todos possuiremos a outrora famosa “letra de médico” que apenas meia dúzia conseguia decifrar. Será o inicio do fim.

Mas existem ilhas onde se pratica a resistência. É o caso dos recados deixados pela casa, sejam dirigidos a nós próprios, ou a outros. E nesse campo em particular, nada substitui os frigoríficos.

A cozinha é o local que todos frequentam. E a superfície lisa do frigorífico, com fundo branco, ou de cor neutra, é ideal para deixar recados para os outros habitantes da casa. Há frigoríficos mais reveladores do que qualquer mural de Facebook. Deixa-me ver o teu frigorifico e dir-te-ei quem és.

Existem os recados práticos familiares – “acabou o gás” ou “é preciso dar água às plantas”. Os que revelam estarmos num lar de fé: "lembra-te: ser feliz é uma decisão de todos os dias”. Os que mostram que existem pais e filhos que só se cruzam ali: “vou chegar tarde, outra vez, mas o jantar está no forno”. E existem até os que demonstram que a comunicação no casal é uma miragem: “já nao aguento mais, amanhã o meu advogado vai entrar em contacto com o teu.”

Se estivermos numa casa habitada por estudantes é até possível que o interior do próprio frigorífico seja mais revelador do que o exterior, com inscrições territoriais colocadas em garrafas ("estas cervejas são minhas e apenas minhas!”), ou em embalagens de plástico (“afastem-se deste queijo da minha avó!”).

Claro que a linguagem humana é complexa e nao se resume ao que escrevemos. Para a definição do sentido global da comunicação interessa não apenas o que se diz, mas também a forma como se o faz. Na verbalizarão, o próprio tom de voz veicula informação e existe uma musicalidade inerente que se capta de ouvido. Do mesmo modo é necessário valorizar os traços de emotividade ou a linguagem corporal que vai acompanhando as palavras.

Nesse sentido, escrever à mão é também pensar com o corpo, imaginar o ritmo dos nossos movimentos, desenhar palavras com a precisão de quem sabe que não se pode enganar, senão terá de recomeçar tudo de novo. Escrever com a mão requer tempo, eternidade, herança.

Mas a maior parte de nós vai esquecê-lo rapidamente. Não sei se é bom, ou mau, é assim. Um dia nem os nossos nomes vamos conseguir assinar de forma legível. Já está a acontecer. O que fazer? Talvez pôr uma nota no frigorifico, ou no espelho da casa de banho para quando acordarmos não nos esquecermos que “hoje, depois do ginásio, é dia de praticar escrita manual.”

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