Lisboa dos madrugadores

Eu gostaria de ter sido fotógrafo. Um dos acontecimentos que mais me impressionavam, quando me mudei para Lisboa, na segunda metade dos 90s, era assistir, durante as minhas caminhadas pós-noitada, à luz que se abatia sobre a Baixa, estendendo-se do cais das colunas até ao Rossio numa preguiça iluminada. O sol sempre foi generoso para com a cidade das sete colinas que, por sua vez, sempre lhe soube dar as boas vindas, com o tom pastel das fachadas dos seus edifícios, com os seus telhados terracota e, claro, com o seu rio Tejo. Tudo parece ter sido colocado de propósito para o espectáculo que é o amanhecer lisboeta. Apetece-nos aplaudir de pé, apetece-nos ser turista até, tirar centenas de fotografias e emoldurá-las todas em casa.
Mas esse momento de luz não seria tão inesquecível, pelo menos para mim, se não viesse acompanhado daquele que é um dos acontecimentos mais extraordinários a que alguém pode assistir numa capital europeia: o enorme contraste entre o lirismo paisagístico da cidade e a crueza concreta de quem vive nela. Algo difícil de ignorar, mas ainda assim tão poucas vezes retratado na poesia ou no cinema que tem como cenário esta cidade. Se nos contassem chegaríamos até a duvidar.Com os primeiros vestígios de luz, ouvíamos a multidão a desaguar na Baixa, num passo apressado corria atrás de autocarros, olhos postos no chão. Indiferentes a tudo, com o tempo cronometrado ao segundo e num silêncio fúnebre. A cidade, com os seus tons suaves, amarelo-ocre, rosa-almagre e azuis, em brincadeira com o sol, revelava, então, as suas verdadeiras cores, aproximando-se da reputação exótica que lhe atribuíam os estrangeiros que a visitam. Lisboa, a cidade que amanhecia negra e ia ficando mulata à medida que o dia avançava, e que ficava bem nórdica quando o sol se punha.Foi assim que a conheci, durante muito tempo só os africanos boémios eram avistados depois de escurecer. Poucos, se compararmos com o número daqueles que desembarcavam na Baixa matutina, vindos dos subúrbios que circundavam a cidade. E como eram poucos, conheciam-se todos; chegavam sempre pontualmente atrasados, nunca antes da meia-noite, como que cumprindo um ritual. Reclamavam algo que era intrinsecamente seu, depois de uma semana de duelo constante com a sua infame condição de africanos, de imigrantes, em cima de um andaime, com um balde de cimento e uma espátula na mão, ou no alto das escadas, avental, sabão e esfregona em punho, ou ainda na fila dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras sem senha e sem perspectiva de como ou quando sair da sombra e deixar de ser um número na estatística. Aquelas madrugadas serviam de bálsamo, o único analgésico possível para sobrevivermos à Lisboa dos 90 com um mínimo de dignidade.Gostaria de ter sido fotógrafo, porque esta Lisboa dos madrugadores que conheci, faz agora 20 anos, continua a cruzar o meu bairro, de olhos colados no chão e passo largo, carregando nas costas a luz de Lisboa, num espectáculo singular que tem tanto de triste como de belo, e é a vida como ela é, na sua urgência de morte, a correr apressada para não perder o autocarro.

 

 

 

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