Miguel Araújo escreveu-se num livro com a ginástica das canções

Entre crónicas já publicadas e alguns inéditos, o cantor e compositor Miguel Araújo dá-se a ler numa obra-espelho a que não é alheia a música, mas aqui livre das obrigações da métrica. Penas de Pato, já nas lojas, deambula pela vida com a ginástica das canções.

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Miguel Araújo ADRIANO MIRANDA

O livro é ele. Os seus pensamentos, imagens, divagações (algumas verdadeiros achados) retratam-no com maior nitidez do que as canções que escreve. Um prédio, um café, uma tabuleta, uma súbita dor nas costas (“sinais de alarme”, aos 40 anos?), até uma canção, são pretexto para algo que não é bem filosofar mas monologar sobre coisas triviais na aparência mas por vezes mais profundas do que imaginamos. Miguel Araújo, nascido em Julho de 1978 em Águas Santas, na Maia, que do reconhecimento entusiástico mas comedido dos Azeitonas passou a estrela nacional (esgotar, com António Zambujo, 28 coliseus em Lisboa e Porto, ainda hoje o espanta), chega-nos assim, impresso em livro.

Cronista regular da revista Visão desde 2017, vêm dela muitos dos textos reunidos em Penas de Pato. Como “Lourizela”, reflexão sobre um lugar desconhecido, lido numa placa à beira da estrada. Um lugar perdido, bucólico, a invocar Caeiro? “Ou será que, chegando lá, se dava o caso de que na Lourizela não havia nada a não ser Lourizela? Uma rotunda com um café e pessoas (algumas) sentadas em cadeiras amarelas a dizer Lipton, debaixo de toldos amarelos a dizer Lipton, a verem a telenovela da TVI sem som. E mais pessoas (as outras todas) na fila do Euromilhões, na esperança de ir embora da Lourizela.” Viu a placa, o resto inventou. Mas inspirado noutra experiência, esta real “Uma vez estava no sítio mais remoto do mundo, algures na Pampilhosa da Serra, onde fui cantar, e alguém nos disse que se fôssemos pelo monte havíamos de encontrar um restaurante com uma carne incrível. Fomos lá, e à porta estava a carrinha da Magos!” Paraísos terrestres? Terão sempre uma marca qualquer de um longínquo “inferno”.

Outras crónicas detêm-se na força da criação, como “Deus” ou “Sr. Germano”, que foi a primeira que ele escreveu, “há anos”. “O meu pensamento anda muito quando eu estou distraído. O fermento de toda a criatividade é deixar a mente criativa vaguear enquanto a mente consciente faz outra coisa qualquer. É assim que me vão surgindo as ideias.” Outras vêm directamente de experiências passadas, como “Saco amarelo e bata azul” (memórias do primeiro dia de escola) ou “The night they drove old dixie down” (nome de uma canção dos americanos The Band a ilustrar a saga de um concerto no Sardoal).

Uma coisa de passagem

Em “Cantar em inglês” (a propósito do Festival da Canção), escreve sobre a influência anglo-saxónica: “Quando eu era pequeno, na minha rua brincava-se (naturalmente) aos índios e aos cowboys. Por razões muito anteriores à minha geração, o pessoal era mais Pat Garrett do que Almeida Garrett.” Ou: “A rapaziada da minha escola era mais Snoop Dog do que Diogo Cão.” No entanto, deixou de tentar cantar em inglês. “Pela mesma razão que deixei de brincar aos cowboys. Ou de dançar em frente ao espelho com a escova de dentes a fazer de microfone. Ou de ver a MTV. Há idades para tudo e eu já não tenho 9 anos nem 16.” Mas lembra-se, diz-nos agora, de certos deslumbres infantis: “Quando o shopping center Brasília abriu, havia filas para andar nas escadas rolantes só por andar nas escadas rolantes. Na minha primeira viagem aos Estados Unidos (um dia escrevo sobre isso) com pais, tios e primos, o grande fascínio era ir ao McDonalds, ver os prédios, andar de táxi amarelo. O que eles fazem no dia-a-dia era o nosso destino!”

Falando em destino, a crónica “Velho para ser novo, novo para ser velho” apanha-o a chegar aos 40, com um irritante contratempo (verdadeiro) que lhe permitiu antever a velhice. “Dores nas costas. Mau. O que é que se segue?” Já com três filhos, escreve “agora o tempo passa de gás.” Mais uma reflexão, não propriamente um tormento. “Eu aceito que a vida é assim, uma coisa de passagem”, diz. “E sempre de renovação. É a essência da vida. Os japoneses têm um termo, mono-no-aware, que é uma melancolia perante tudo que é passageiro. Tenho pena de isso não existir na minha língua.”

Mas se não se queixa da vida, também não se queixa da sociedade em que vive. “Está muito melhor. Quando eu ia para a escola, passava por mais do que um bairro de lata. Era comum, hoje quase não se vêem. Eu venho de uma família burguesa, educada, mas lembro-me de o meu tio, educado, amarfanhar o maço de cigarros e atirá-lo pela janela. Na época era uma coisa mais ou menos aceitável, e andava quase sempre tudo sujo.” Esta é uma das coisas que Miguel já não observa, ao “ver a vida a passar da varanda”, subtítulo deste seu livro, que remete não para uma posição de superioridade (ver lá do alto) mas sim para um olhar mais distanciado e vasto sobre as coisas que nos rodeiam.

Na música, não nos livros

Começou a escrever as suas crónicas “sem ter um livro em vista”. Até que um dia o desafiaram a escrever um romance. Disseram-lhe que se notava que ele era um grande seguidor do Alexandre O’Neill (“que eu nunca tinha lido na vida”), a coisa passou e uns tempos depois a Visão convidou-o para escrever uma crónica semanal. E acabaram por ser as crónicas a dar forma ao livro. Crónicas de escrita rápida, uma hora no máximo para cada. Dá prazer, escrever assim? “Dá, acaba por dar. Eu associo as canções a uma coisa mais penosa, apesar de isto se chamar Penas [de Pato]. Porque eu escrevo letra depois da música, mesmo quando o parceiro sou eu. Aqui há uma fluência maior.”

A ginástica das canções dá-lhe um fôlego maior à escrita. “É preciso ter as palavras na ponta da língua, uma pessoa quer dizer uma coisa, há várias maneiras de a dizer e é preciso trabalhar com isso. As palavras saem-me com facilidade.” Quando as ideias lhe surgem, toma logo nota no telemóvel. “Nas notas, no Google Drive, porque assim ficam guardadas nos documentos. Não pego numa caneta para nada, a não ser nos hotéis, para preencher aquelas coisinhas. A ‘Lourizela’ começou por ser uma música, estava a tentar escrever uma letra. E tenho milhares de letras assim, desemparelhadas, é o meu baú.”

Leituras? Miguel Araújo lê livros, claro, mas o seu universo é preferencialmente o da música e é aí que se inspira. “A minha vida sempre andou à volta das canções. Mesmo para esta escrita, a minha grande influência são os letristas, é o Paul Simon do America, o Carlos Tê, coisas assim. Em termos de prosa li muito, claro; mas eu gosto sempre, seja nas letras seja na prosa, de uma escrita mais transparente, menos fabricada, ao correr da pena. Os poetas da minha geração estão na música popular, não nos livros.”

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