O leitor

Há cerca de 12 anos enviou-me um e-mail, protestando pelo facto de ter ido comprar um álbum do músico inglês Herbert, depois de ler um texto da minha autoria sobre o mesmo.

Há cerca de doze anos enviou-me um email, protestando pelo facto de ter ido comprar um álbum do músico inglês Matthew Herbert, depois de ler um texto da minha autoria sobre o mesmo.

Parecia-lhe que a descrição que eu havia feito não se ajustava ao que ouvia e sentia-se lesado. A sua missiva era longa, informada, elegante e divertida. Não concordei com o ponto principal, mas fui sensível a alguns dos seus fundamentos.

Ao contrário de muitos outros leitores que se limitam a apontar omissões, a contrapor sentenças ou a contrariar os motivos alheios, nunca focando a substância de determinada crítica, dessa maneira nunca se expondo e não se dispondo à verdadeira troca de argumentos, nele existia uma vontade de retribuir, de forma produtiva, com outras ideias e desafios.

Respondi-lhe. Ele ripostou. E assim sucessivamente. Ou seja, encetámos um diálogo. De tal forma que a partir daí me começou a enviar e-mails com alguma regularidade, rebatendo ou coincidindo em alguns dos meus textos sobre música.

Um dia, num concerto, apresentou-se e a partir daí fomo-nos encontrando mais vezes. Há uns anos confessou-me, por entre risos, que se havia tornado admirador de Herbert. Era assim, desarmante. E confessei-lhe uma história que se havia passado comigo com semelhanças. Na adolescência comprei Remain In Light dos Talking Heads, depois de ler uma crítica num jornal, e detestei. Fui, inclusive, trocar o disco à loja. Hoje é certamente um dos álbuns que mais gosto de sempre.

Numa ocasião, no Fórum Sons — uma plataforma da Internet que estava associada ao jornal PÚBLICO, onde prevalecia o saudoso Fernando Magalhães —, estavam à volta de um texto meu que nem hienas, e do particular passaram para os críticos em geral, o que costuma acontecer com assiduidade, e apareceu ele.

Nunca mais me esqueci do que ele disse: que tendo em atenção os débeis argumentos dos críticos da crítica ali apresentados que a qualidade média da crítica em Portugal não era nada má, invocando um ambiente comunicacional onde crítica e críticos da crítica não podiam ser dissociados.

E acrescentava que lhe fazia confusão a desinformação que existia de parte a parte, com muitos leitores exigindo uma multiplicidade de papéis absurdos à crítica e esta mostrando pouca sensibilidade à deslocação de expectativas dos leitores.  

Não poderia estar mais de acordo. Hoje é banal ouvir dizer que a Internet acelerou o processo de transformação da crítica.

Sim, mas o que tende a tornar-se irrelevante são algumas maneiras de fazer crítica, assim, no plural, porque esta é espaço para muitas diferenças. Para a crítica que sabe analisar, ajudando a decifrar de forma inclusiva e não paternalista, reflectindo mas também estimulando a realidade, através de um olhar singular, continua a existir espaço, dizia-me ele.

Talvez. Só sei que, enquanto crítico, aprendi imenso com ele. E ele também me parece que aprendeu alguma coisa comigo. Há dias soube que o Luís B. Mestre morreu. Era um grande leitor. Era um excelente crítico da crítica. Até sempre.

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