Phaos

A série A Luz como Meio e Limite apresenta quinzenalmente um artigo escrito por um autor oriundo dos mais variados campos do conhecimento ou da criação artística, sob orientação de Pedro Lapa, professor universitário e director artístico do Museu Colecção Berardo. Esta semana, a reflexão é do professor de Filosofia Antiga António Pedro Mesquita.

No conjunto da filosofia antiga — longo período histórico-filosófico de mais de 12 séculos, que começa com Tales de Mileto, nos séculos VII-VI a.C. e só termina com os últimos filósofos neoplatónicos, na viragem do século VI para o século VII d.C. —, costuma reservar-se a expressão “pré-socráticos” para designar os primeiros filósofos de todos, aqueles que, na esteira de Tales, introduziram o tipo de reflexão, investigação e especulação a que se veio a chamar “filosofia”.

No período pré-socrático, o tema da luz obteve dois tratamentos diversos por parte dos filósofos: em clave científica, enquanto fenómeno natural a explicar ou ela própria elemento integrante de determinada teoria explicativa; e em clave simbólica, enquanto ingrediente narrativo de carácter mitopoético ou alegórico.

Curiosamente, em contexto científico, as primeiras referências a este tema não são directamente à luz (phaos, phôs), mas sim ao relâmpago (astrapê).

Parece, de facto, que Anaximandro e Anaxímenes de Mileto, os imediatos sucessores de Tales, na primeira metade do século VI a.C., se interessaram pelos relâmpagos e propuseram uma teoria engenhosa para os explicar. De acordo com essa teoria, os relâmpagos, tal como os demais fenómenos meteorológicos da mesma família, como os raios, os trovões, os redemoinhos e os tufões, não seriam, todos eles, senão o resultado de diferentes manifestações do ar e do vento. Como nos conta um doxógrafo, “Anaximandro diz que todos estes fenómenos acontecem como resultado do vento: pois, sempre que este é encerrado numa nuvem densa e depois irrompe para fora dela à força, graças à sua subtileza e leveza, o rebentamento produz o estrondo, ao passo que a fenda em contraste com o negrume da nuvem produz o clarão”. Por isso, como diz outro autor, “o relâmpago origina-se sempre que o vento se desencadeia e fende as nuvens”.

Um outro aspecto que muito interessou e estimulou a actividade científica dos primeiros filósofos foi a explicação da luz da Lua.

Segundo uma tradição, hoje desacreditada, teria sido o mesmo Anaxímenes a descobrir o carácter reflexo da luz lunar. É provável que essa descoberta tenha sido de facto feita no período pré-socrático, mas um pouco mais tarde, uma vez que filósofos das gerações seguintes, como Parménides, Empédocles e Anaxágoras, entre a segunda metade do século VI e o último quartel do século V a.C., conhecem todos o facto de que a Lua não tem luz própria, antes a recebe do Sol.

Estava, no entanto, destinado a Empédocles de Agrigento, no século V a.C., conceber a primeira teoria científica onde a luz comparece como tal. Trata-se da sua teoria da percepção como conhecimento do semelhante pelo semelhante, pela emissão de eflúvios através dos poros que cobrem a totalidade do corpo humano e que, ao atingir as partículas equivalentes do objecto, permitem percebê-lo, teoria no quadro da qual a visão é explicada, analogamente, pela emissão de luz através da pupila.

Eis como, de acordo com um testemunho de Aristóteles, ele se teria expressado: “Assim como quando alguém, ao planear uma viagem numa noite de invernia, prepara uma luz, uma chama de ardente fogo, ao acender para qualquer espécie de tempo uma lanterna de linho, que dispersa o sopro do ventos, quando sopram, mas a luz mais ténue jorra para o exterior e brilha através do limiar da porta com raios que não vacilam: assim também, nessa altura, ela Afrodite [deusa do amor e figura cosmogónica na obra de Empédocles] deu à luz a redonda pupila, fogo primevo confinado ao interior de membranas e delicadas roupagens e foram estas que contiveram a água profunda que fluía em redor, mas consentiram que para fora passasse o fogo mais subtil.”

Este texto é sugestivo porque mostra como, nos tempos de Empédocles, já no final do período pré-socrático, a natureza poética da expressão não impedia ainda a pretensão científica da explicação.

Porém, um pouco antes de Empédocles, na viragem do século VI para o século V a.C., Parménides de Eleia, um dos mais influentes pensadores do seu tempo — e ele próprio também autor de um Poema, mas de cariz fortemente conceptual e abstracto —, é, a este respeito, particularmente interessante, porque, não apenas formula em termos poéticos uma explicação científica, como aquele, mas inclusive fala da luz nos dois registos que acima distinguimos, a saber, tanto em registo científico, como em registo simbólico.

De facto, nas interpretações mais correntes do Poema de Parménides, este consta das seguintes três partes: um proémio de natureza alegórica, onde se narra, em linguagem cifrada, a viagem de um jovem até uma deusa que, ao acolhê-lo, lhe promete contar “todas as coisas”, a saber, “tanto o ânimo inabalável da rotunda verdade, como as opiniões dos mortais, em que não há verdadeira confiança”; uma segunda parte, conhecida como “Via da Verdade”, onde a deusa cumpre a primeira secção do seu programa, desenvolvendo o seu “pensamento acerca da verdade”; e, finalmente, uma terceira parte, conhecida como “Via da Opinião”, onde ela faz o jovem aceder às crenças enganadoras dos mortais, correspondentes, de acordo com as mesmas interpretações correntes, a uma cosmologia de carácter assaz convencional.

Ora, na terceira parte, a cosmologia proposta, de que restam pouquíssimos elementos, surge toda ela fundada na distinção originária de duas “formas”, justamente a luz, “chama etérea do fogo, branda e muito leve”, e a “noite escura, densa na aparência e pesada”, a cuja diversidade competiria explicar todos os fenómenos cósmicos, estando, como ele diz, todo o Cosmo, “a um tempo, repleto de luz e de noite sombria”.

Todavia, se na terceira parte está reservada à luz um papel de carácter científico, também na primeira parte intervém a luz, só que aqui carregada de fortíssimo valor simbólico. De facto, a própria viagem narrada no proémio é toda ela vista como um trajecto da mansão da Noite, simbolizando a ignorância, para a mansão da Luz, morada da deusa que acolhe o jovem, simbolizando o conhecimento, trajecto em que ele é sugestivamente conduzido pelas “filhas do Sol”.

Bem entendido, este valor simbólico da luz e o próprio significado que lhe é atribuído no Poema de Parménides tinham já, no tempo deste, uma larga e antiga tradição na cultura grega, bem testemunhada na Teogonia de Hesíodo (século VII a.C.) e, se pelo menos a inspiração deles for arcaica, nos textos órficos.

Um dos momentos onde, já no interior do pensamento filosófico, tal está patente é na “tábua dos contrários” pitagórica, onde, de acordo com Aristóteles, a luz e a obscuridade figuram no conjunto dos dez princípios opostos que os pitagóricos teriam concebido: “Limite e ilimitado, ímpar e par, uno e pluralidade, direito e esquerdo, macho e fêmea, estático e dinâmico, recto e curvo, luz e escuridão, bom e mau, quadrado e rectangular.”

Não queremos terminar sem fazer referência a um pequeno texto, que, como é timbre do seu autor — o filósofo pré-socrático mais rebelde a classificações —, não poderia ser catalogado em nenhum dos dois registos por que distribuímos o tema da luz no período pré-socrático.

Trata-se do fr. 26 de Heraclito de Éfeso (século VI a.C.), que, dado o seu imbricamento com a totalidade do seu pensamento filosófico, nos limitamos aqui a citar, sem nos atrevermos a sequer propor um início de interpretação.

Diz assim: “De noite, o homem acende uma luz para si próprio, ao extinguir-se-lhe a visão; em vida, está em contacto com o que é morto, quando dorme, e com o que dorme, quando acordado.”

Que fique apenas como um testemunho do encantamento muito especial do texto heracliteano e não menos do justificado epíteto que a tradição lhe atribuiu: Heraclito, “o obscuro”.

(Todas as traduções são retiradas de Kirk – Raven –Schofield, Os Filósofos Pré-Socráticos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.)

António Pedro Mesquita é professor de Filosofia Antiga na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigador do Centro de Filosofia da mesma universidade. Tem diversas obras publicadas neste domínio, sobretudo sobre Platão e Aristóteles, e é o coordenador do projecto de tradução anotada das obras completas de Aristóteles, pelo qual está sendo publicada, em Portugal (Imprensa Nacional-Casa da Moeda) e no Brasil (Editora Martins Fontes), a totalidade dos escritos incluídos na colecção atribuída a este filósofo

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