Outono no quintal

1. Estou há seis meses neste quintal alentejano a observar os dióspiros. Quando cheguei, no fim de Março, era só a copa verde, viçosa. Depois vieram os botões, com uma espécie de gola ondulada, o botão foi inchando numa bola verde e dura, que de vez em quando caía. Acompanhar uma árvore é como ler Darwin, sobrevivem os mais fortes, os que apanham a luz certa, a chuva certa, os que não têm outros por cima a fazer pressão, a roubar espaço, respiração, os que não são penetrados por um predador e apodrecem antes de ficar maduros. Ao longo dos meses, o chão do quintal foi-se transformando num campo de batalha: entre a Primavera e o Verão, as ameixas, que caíram mais do que sobreviveram, entre o Verão e o Outono, os dióspiros, a cada hora caindo, ainda verdes, ploc. O chão de um quintal transforma-se rapidamente num composto natural. Hoje, que é o primeiro dia de Outubro, toda a terra está coberta de folhas, as folhas da ameixoeira que ainda há um mês tinha uma copa, e agora é um pobre tronco, quase careca, nu; as folhas de diospireiro que as grandes chuvas conseguiram derrubar; as folhas da parreira, que foram secando. E, no meio das folhas, cadáveres de ameixas e dióspiros, misturados com a vida dos caracóis, das lagartixas e das aranhas, que são os grandes habitantes da minha casa. Um dos efeitos de uma pessoa hibernar para dentro de um livro quando tem um quintal é que os animais tomam conta de tudo. 

2. Os caracóis incham com a chuva, um fenómeno. Não vou abandonar esta frase para ir ao Google ver como resolvem a parte da casca, mas a casca também deve alargar. A cada dia me parecem mais gordos. A cada dia são mais. Olho pela janela e está um colado ao vidro. Ao vidro? O que pode haver de interessante num vidro para um caracol? Nem água, nem terra, nada natural. Talvez fosse só um caracol alpinista. De resto, eles ficam pelo muro, pelos troncos, equilibrados nas folhas da parreira e dentro do cinzeiro. Têm uma especial predilecção pelo cinzeiro, que fica sempre em cima do muro, e está sempre cheio de água da chuva. É uma pequena piscina natural, com restos de tabaco de enrolar. 

3. As aranhas trabalham como Penélopes. Devem detectar casas em que existem toupeiras hibernadoras como eu, porque estão por toda a parte, no tecto como no chão, ligando todas as minhas coisas umas às outras. Uma delas colonizou o candeeiro da mesa onde trabalho, que é a única mesa da casa. Todos os dias eu destruo o trabalho dela, para tentar que o candeeiro se mantenha independente da parede, e todos os dias ela volta, renovando as pontes. Ainda bem que este livro é curto, em breve alguém teria de entrar nesta casa com catanas, foices, enfim, equipamento de desbravador.

4. As lagartixas são um despertador, com os seus golpes, a sua velocidade. Quando a toupeira hibernadora está em estado de paralisia, uma cauda de lagartixa acode, num relance. E, ao contrário dos besouros, das abelhas, das libelinhas e toda a espécie de voadores, as lagartixas não entram pela porta da cozinha, que está sempre aberta.

5. No telhado do quarto mora uma colónia de vespas. Foi o que descobrimos ao fim de semanas de ruído indeterminado. Foi interessante, porque o quarto era a única divisão da casa, além do átrio de entrada e da cozinha. Portanto, nos últimos meses, a cama teve de ser realojada no átrio de entrada, na diagonal entre a porta da rua e a salamandra. Está mesmo colada à salamandra, o que significa que mal fique frio terá de sair dali, sob pena de arder. Mas o acordo em relação à casa era justamente só até ao Outono, por causa do frio.

6. O Nuno, que é o meu senhorio, enfrentou as vespas com mais dois amigos, apicultores. Como elas já tinham aberto um buraco para o tecto do próprio quarto, deitaram lá para dentro uma espuma. É basicamente uma barreira não-letal, porque elas continuam activas do lado de lá da espuma. Agora, o quarto é todo delas.

7. Entretanto, com o anúncio do primeiro dióspiro, nasceu o Pedro, irmão do Vasco, que é o filho do Nuno, e meu parceiro de salame de chocolate, ou só mesmo de chocolate.

8. Estou a escrever esta crónica depois de colher os primeiros dois dióspiros. Estão os dois furados, um buraco negro, portanto suponho que há vida lá dentro. Outra coisa que se aprende a observar a vida das árvores, pelo menos as árvores que não são cuidadas diariamente, é que os frutos amadurecem em tempos diferentes, uns ainda verdes, outros já podres. A parreira foi o exemplo mais espectacular. Ainda há um ou outro cacho de uvas vermelhas, enquanto outros são já fósseis encarquilhados, onde as aranhas já fizeram teia.

9. Passou rápido, o Verão, não? Ao mesmo tempo, é como se tivessem passado anos. Há-de querer dizer que estamos vivos, a tentar achar mais ou menos o ponto certo de aceleração, como as frutas, e não cairmos antes do tempo. 

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DR

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