Perdida desde o século XVI, Deposição de Cristo de Mantegna está agora no Vaticano

Pintura foi descoberta no santuário da cidade de Pompeia sob camadas de mau restauro. Recuperada pelos laboratórios dos Museus do Vaticano, a obra renascentista está agora em exposição em Roma.

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Deposição de Cristo de Andrea Mantegna está agora exposta nos Museus do Vaticano Filippo Riccardo di Chio/Museus do Vaticano
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Já está exposta na Pinacoteca do Vaticano, em Roma, a pintura Deposição de Cristo, atribuída ao pintor renascentista italiano Andrea Mantegna e que foi encontrada em Pompeia sob várias camadas de outras tintas e tentativas de recuperação. A obra, considerada perdida desde o século XVI, foi descoberta em 2020, mas só agora essa identificação, que durou cerca de três anos a autenticar e restaurar, foi anunciada. Trata-se de “material pictórico extraordinário”, atesta a directora dos Museus do Vaticano, Barbara Jatta, e confirma-se que é o original de Mantegna, um nome menos conhecido do que os mais espectaculares pintores da Renascença como Miguel Ângelo ou Rafael, mas muito influente na obra dessas super-estrelas da História da Arte.

A Deposição de Cristo de Mantegna (c.1431-1506) estava agora no Santuário da Bem-Aventurada Virgem Maria do Rosário de Pompeia, na cidade de Pompeia. Uma académico descobriu-a numa base de dados online onde, apesar das camadas de danos que tinha sofrido, detectou elementos como “o rosto de Maria Madalena em lágrimas, o fundo com uma Jerusalém celestial, a porta monumental à esquerda evocando vagamente o Arco de Tito”, um monumento em Roma. Stefano De Mieri, professor de História de Arte na Universidade Suor Orsola Benincasa, de Nápoles, identificou ali "uma qualidade tão elevada que não poderia tratar-se de uma cópia antiga", disse, citado pela agência de notícias italiana Ansa.

A última referência à localização desta Deposição de Cristo remonta ao século XVI, quando estaria na basílica de San Domenico Maggiore em Nápoles — é uma carta de 1524 escrita por Pietro Summonte que descreve uma pintura, “da mão de Mantegna” e representando a deposição de Cristo da cruz, que estaria na igreja. Depois disso, desapareceu dos registos. Nessa missiva, citada nos comunicados dos Museus do Vaticano para explicar a história da redescoberta desta obra, Summonte, um humanista cujo trabalho de pesquisa sobre as obras de arte em Nápoles o tornou uma espécie de historiador de arte, descreve Mantegna como “altamente considerado como pintor, porque foi com ele que começou o reavivar [do interesse pela representação] da Antiguidade”.

Em 2019, a propósito da ida a leilão na Sotheby’s do desenho Triunfo de Alexandria, uma peça única de Mantegna, a leiloeira refere “a pintura agora tragicamente perdida da Deposição de Cristo”.

Já não é o caso. Pompeia, que fica na região de Nápoles, foi a sua casa durante um período que não é detalhado pelos peritos — De Mieri arrisca que a obra teria sido colocada numa capela da basílica napolitana e depois transitado para Pompeia, em cujo Santuário deverá ser depositada depois de finda a exposição em Roma. Não é fornecida uma data para o término da mostra, sita na sala XVII da Pinacoteca.

“Não dispomos de documentos que atestem a transferência da Deposição de Cristo da igreja dominicana de Nápoles, onde a sua presença está documentada, para o Santuário da Bem-Aventurada Virgem Maria do Rosário de Pompeia, mas as pesquisas, os exames e os resultados extraordinários de um longo e meticuloso projecto de investigação confirmaram que a Deposição de Cristo do Santuário de Pompeia é obra de Mantegna”, diz Barbara Jatta, directora dos Museus do Vaticano, no comunicado que apresenta a exposição The Mantegna of Pompeii. A Rediscovered Masterpiece.

Descoberta pandémica

“Descobri o quadro em Julho de 2020, consultando o portal BeWeb, onde é coligido o inventário dos bens móveis das dioceses italianas”, contou De Mieri ao jornal católico Avvenire no início desta semana. No site pôde ver uma pintura danificada por tentativas falhadas de restauro, mas um ano depois acabaria por a ver pessoalmente. Avaliando a qualidade dos segmentos da pintura menos comprometidos por camadas de tinta posteriores à sua feitura original, alertou o Santuário de Nossa Senhora do Rosário e os museus e os peritos deste último deslocaram-se a Pompeia. “Imediatamente e com uma lâmpada de infravermelhos portátil, mas também espreitando com os nossos próprios olhos sob as camadas de tantas repinturas, compreendemos”, escreve Barbara Jatta no catálogo da mostra.

A obra foi para Roma, onde foi restaurada nos laboratórios dos Museus do Vaticano. Estes descrevem o estado da pintura, que receberam em Maio de 2022, como “frágil” e “em condições de conservação muito comprometidas”. O processo de restauro foi “complexo, precedido por pesquisa histórica e estudos de imagem não-invasivos”, diz o comunicado dos Museus do Vaticano.

Desde que foram “chamados por monsenhor [Tommaso] Caputo [arcebispo de Pompeia] para ver a obra em Março de 2022”, relata Barbara Jatta, “compreendemos imediatamente que, sob as camadas de repintura, havia um material pictórico extraordinário. O restauro revelou pormenores iconográficos e técnicos que confirmam a assinatura de Mantegna, devolvendo à história da arte uma obra-prima que se julgava perdida. Depois, entrou em cena a ‘máquina' dos Museus do Vaticano, com testes de diagnóstico, investigação e restauro”. Jatta divide com Fabrizio Biferali, conservador do Departamento de Arte dos séculos XV-XVI dos Museus do Vaticano, o projecto de curadoria da exposição, repetindo este último à agência de notícias Ansa que não restam dúvidas que não se trata de uma cópia “mas de uma pintura original de Mantegna".

O Mantegna de Pompeia

Jatta postula no texto de introdução do catálogo dedicado à mostra que “a pintura de Andrea Mantegna de San Domenico Maggiore em Nápoles é agora ‘o Mantegna de Pompeia’”. A pintura é de grandes dimensões, embora não sejam detalhadas pelas várias fontes de informação que se debruçam sobre o tema.

Mantegna nasceu numa aldeia nas cercanias de Pádua, no norte de Itália, filho de um carpinteiro. Em 1445 ingressou na guilda dos pintores e três anos depois era já considerado um mestre com obra religiosa significativa — alguns desses trabalhos iniciais foram vítimas dos bombardeamentos da II Guerra Mundial.

Trabalhando para mecenas ou encomendas de nobres, Mantegna passou por Ferrara, Veneza e Mântua. Tornou-se cunhado de Giovanni Bellini, relacionando-se assim com a mais famosa família de pintores de Veneza da época. A sua importância no Renascimento italiano é crucial: são-lhe atribuídas inovações na composição e capacidades de pesquisa sobre a Antiguidade que influenciaram Bellini, por exemplo, ou mesmo Albrecht Dürer. Assina obras que estão agora em museus em Milão, Ferrara, Paris (Louvre) ou Madrid (Prado). Morreu a 13 de Setembro de 1506 quando decorava a sua própria capela fúnebre na basílica de Sant’Andrea.

Os detalhes do meticuloso restauro constam de um vídeo dos Museus do Vaticano, bem como de uma série de imagens na página da exposição, que pode ser consultada aqui.

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