Ser Charlie e ser muçulmano

"Espelho meu, existe alguém mais Charlie Hebdo do que eu?", parece ser a obsessão da maioria nos últimos dias.

O primeiro choque emocional depois do atentado terrorista provocou uma natural vaga de solidariedade pelas vítimas, levando imensas pessoas a adoptar simbolicamente o slogan: Je Suis Charlie. Foi o meu caso.

Nunca folheei na vida a publicação satírica francesa, mas não era isso que, para mim, estava em jogo. O que era inaceitável era um atentado daqueles, por um princípio de universalidade, seja onde for, dirigido por quem for, em nome do que for e contra quem for. Ponto final.

Num segundo momento surgiu uma vaga reactiva, colocando em causa a postura dos que se solidarizaram dessa forma, pegando apenas num dos vectores do acontecido – a liberdade de expressão – para várias denúncias.

Existiu quem se mostrasse chocado com os ataques, mas questionasse a linha editorial da publicação, dizendo que contribuiu para a estigmatização da parcela muçulmana da população, já de si na cauda da pirâmide social.

Outros acusaram de hipocrisia quem se solidarizou inicialmente alegando que a liberdade de expressão é posta em causa com assiduidade e nessas alturas não há a mesma disposição.

E outros denunciaram o que seria uma selecção perversa das ocorrências com as quais nos envolvemos – optamos pela vizinhança cultural e esquecemos acontecimentos de outras paragens.

Há alguma dose de razão nestes enunciados, mas também grandes equívocos. A linha editorial da Charlie Hebdo não deverá servir para relativismos – o que está em causa é, em primeiro lugar, a nossa liberdade, sem ambiguidades. E nesse sentido defender a liberdade de qualquer publicação adoptar a linha editorial que lhe aprouver, por mais inconveniente que possa ser.

Em segundo lugar é evidente que existiram e continuarão a existir entraves à liberdade de expressão (alguns perpetrados pelos que agora a dizem defender), mas os mesmos não acabam em assassinato, nem presidem a uma agenda extremista, o que acabou por atribuir ao sucedido uma emoção particular.

Os que agora adoptam uma posição defensiva deveriam pensar nisso. Este ambiente, apesar de tudo, consensual acerca da liberdade de expressão, vai fazer com que no futuro próximo a sua supressão seja bem mais difícil.  

E é também verdade que damos mais espaço dentro de nós ao que aconteceu em Paris do que aquilo que acontece noutras latitudes, mas não nos devemos culpabilizar, nem devemos pensar que temos a chave da compreensão para todos os problemas do mundo. Não só isso é impreciso e arrogante, como é uma razões pelas quais o Ocidente muitas vezes age de forma precipitada e desastrosa.  

Até agora o sucedido em França tem sido percebido como uma questão de intolerância e menos como sendo algo decorrente de problemas de desigualdade, exclusão, exploração ou injustiça. Mas é certo que o que se passou é bem mais complexo e vai muito além do religioso ou das diferenças culturais.

Resta saber o que se seguirá no imediato. Estes são momentos de marcações de posições. Entre Ocidente e muçulmanos e vice-versa. Mas também no interior do Ocidente e no interior do Islão, ambos em encruzilhadas.

Haverá certamente quem aproveitará este momento para propor lideranças musculadas, querendo impor leis mais rígidas, polícias com poderes ilimitados, a propagação do medo na forma de novos nacionalismos.

Resta saber se os partidos extremistas europeus não serão tão perigosos para a cultura ocidental, para a liberdade e democracia como os extremistas islâmicos. À custa de querer defender-se do extremismo islâmico, a Europa pode muito bem diluir-se às mãos daqueles que a pretendem defender. Para reagir a estes acontecimentos será necessário uma nova esquerda. Vamos a ver se ela emerge.

O slogan que mais se fará ouvir este domingo, em Paris, deverá ser “Eu sou Charlie Hebdo”, mas era bom que o grito que se ouvisse, sem condescendências, fosse bem mais integrador e universal, não esquecendo os muçulmanos que nada têm a ver com extremismos: “Eu sou Charlie e sou muçulmano.”

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