O último a sair apague a luz
Parece que não foi o Putin. Em segredo, ainda alimentei a esperança de que tivessem sido marcianos a provocar o apagão.
Para grande desgosto de alguns, parece que não foi o Putin. Falo, claro, do apagão de segunda-feira.
Com um impacto muito mais significativo do que o apagão de Maio de 2000 provocado por cegonhas – esse só atingiu o Sul do país, durou cerca de duas horas e as cegonhas também não eram russas –, confesso que em segredo ainda alimentei a esperança de que tivessem sido marcianos. Aquele tipo de homenzinhos verdes irritantes e metediços tão bem-apanhados por Fredric Brown em Martians, Go Home, que chegam, armam uma bagunça dos diabos e acabam por desaparecer sem que, para começar, se perceba sequer porque apareceram.
No divertido livro de Brown, publicado originalmente em 1955, o desinspirado escritor de ficção científica Luke Devereaux – retirado no deserto na expectativa de que as musas relutantes aí se lhe revelassem; uma versão, mas em bom, dos demónios que, segundo a narrativa cristã, tentaram sem êxito Santo Antão, um dos padres eremitas – questiona-se sobre se o seu encontro inicial com os extraterrestres invasores não teria resultado de um delírio alcoólico. No meu caso, o apagão apanhou-me sóbria e engripada em plena produção cronística, divagando livremente sobre as anunciadas celebrações conjuntas do 25 de Abril e do 1 de Maio nos jardins da residência oficial do primeiro-ministro, onde decorrerá um “miniconcerto de Tony Carreira”. Uma dark bet em como existirão encore a montes.
Digo já que me precavi contra presumíveis acusações de snobismo. Assim, relembro mais uma vez as palavras memoráveis (por supuesto) do espanhol Fernando Savater, publicadas em 2006 no El País (seria preciso esperar por Janeiro de 2024 para ver o El País despedir o seu colunista mais antigo pelo telefone — sempre haviam sido 47 anos!), em resposta a um artigo do fundador de Le Nouvel Observateur que criticava a baixa qualidade (estética, naturalmente) das caricaturas de Maomé: “Jean Daniel informou-nos, nestas mesmas páginas, que aceita a blasfémia sempre que acompanhada de bom gosto e dignidade artística: ele é daqueles que apenas apreciam um striptease quando executado ao som de Mozart”.
E porque falei em Maomé, e porque, como dizia um amigo, “a esquerda anda mais papista do que o Papa”, deixo, para reflexão, o lembrete de há dias do Charlie Hebdo acerca das declarações do falecido Papa após o massacre perpetrado por radicais islâmicos na sede da revista satírica francesa a 7 de Janeiro de 2015, do qual resultou a morte de 12 pessoas.
Comentou então o Papa: "Não se pode provocar nem insultar a fé das outras pessoas. É verdade que não devemos reagir com violência, mas se o dr. Gasbarri, que é um grande amigo, ofender a minha mãe, deve estar preparado para levar um soco. É normal. Não se pode provocar, não se pode insultar a fé dos outros. Não se pode ridicularizar a religião dos outros”. E rematava a jornalista, autora do referido lembrete: “Lembramos-lhe a título póstumo que, em França, o delito de blasfémia foi abolido em 1881”.
Mas divagava eu sobre assuntos mais mundanos. O miniconcerto de Tony Carreira, artista convidado para as comemorações conjuntas e oficiais do 25 de Abril e do 1 de Maio.
Façamos um preâmbulo. Há quem adore Tony Carreira e há quem deteste Tony Carreira. Há quem o ache um grande cantor e há quem o considere uma agressão sonora. É público que Luís Montenegro gosta de Tony Carreira. Em tempos, mais precisamente em Dezembro de 2019, num programa de Cristina Ferreira na SIC até cantaram em uníssono Sonhos de menino, letra que Montenegro revelou saber de cor.
Já agora, terá sido a essa confidência televisiva que Marcelo Rebelo de Sousa foi buscar a ideia do “rural”, das origens num “país profundo” (apesar de o presidente do PSD ter nascido no Porto e passado a infância e juventude em Espinho?).
Um lamiré da letra: “Lembro-me de uma aldeia perdida na beira/ A terra que me viu nascer/ Lembro-me de um menino que andava sozinho/ Sonhava vir um dia a ser/ Sonhava ser cantor de cantigas de amor/ Com a força de Deus venceu/ Dessa pequena aldeia o menino era eu”.
Fora o caso de Luís Montenegro também ter sonhado ser “cantor de cantigas de amor”, e poder-se-ia dizer dele o que António Lobo Antunes disse de Pedro Passos Coelho: “Deus serviu-se de Filipe La Féria para termos este primeiro-ministro. Deus teve de escolher entre duas desgraças. E preferiu que ele fosse primeiro-ministro a cantor”.
Referi portanto a existência de pessoas que gostam e/ou não gostam de Tony Carreira. Eu não gosto, mas lá no monte há quem adore e não será essa incompatibilidade acústica que nos impedirá de beber juntos um medronho. Há, no entanto, um tipo de pessoas com quem eu não beberia nem meio medronho (ou sequer café). São aquelas pessoas que nunca comprariam um disco de Tony Carreira, cortam-lhe o pio sempre que o ouvem (a não ser que tenham ido ver o povo, como bem notou Cesariny), mas opinam que há que ser condescendente porque é daquilo que o povo gosta (plágio ou não). Se lhes dermos corda suficiente, até acabarão eventualmente por sugerir que Tony é o nosso Verdi que também juntava multidões. Alguns poderão mesmo admitir grande pesar por nunca terem assistido a um dos seus espectáculos. Foi o caso de Augusto Santos Silva, então ministro dos Negócios Estrangeiros, que chegou a declarar: “Nunca consegui cumprir um dos meus sonhos sociológicos que foi assistir a um concerto de Tony Carreira, porque me dizem que é um dos acontecimentos que um sociólogo deve observar”.
Portanto sobre snobismos penso que ficaremos conversados.
Vivemos uma época estranha. Tanta coisa nova a acontecer! E não apenas Carreira a tomar o lugar do vozeirão de Paulo de Carvalho. Por exemplo, a nossa cada vez maior dependência de tecnologias avançadíssimas e, em simultâneo, que jeito nos teria dado hoje um radiozinho a pilhas! Com o apagão, o meu pensamento elevou-se até ao ex-ministro do Ambiente João Pedro Matos Fernandes: que feliz estava no final de 2021 quando se deu por encerrada a central termoeléctrica do Pego!
Mais dependência energética, menos dependência energética — assunto sobre o qual a minha ilustração é confessadamente zero — há variantes que não variam. Mais inteligência artificial, mais quinoa ou menos açúcar, quer-me parecer que o sistema continua a funcionar basicamente da mesma forma: os ricos estão cada vez mais (podres de) ricos, os miseráveis com sorte passam a pobres, e o resto, incluindo os pobres e os remediados, vai levando com doses maciças de propaganda até o dia em que os cérebros sobreaqueçam e depois logo se vê. Por enquanto, a precária paz social parece plasmada nestas palavras do músico Robert Wyatt que já vai nos oitenta anos. E que disse ele ainda no século XX ao jornalista Rui Tentúgal? Uma coisa muito simples (felizmente Robert Wyatt não é sociólogo): “É óbvio que [ao capitalismo] não interessa que toda a gente morra à fome porque aí desaparecem os consumidores. Basta que as pessoas tenham dinheiro para comprar Coca-Cola, hambúrgueres e discos da Britney Spears”.
E com isto regressei à música. Resumindo. Ninguém me verá a exigir que nas celebrações do 1.º de Maio se escute em silêncio Era um redondo vocábulo, talvez a mais bela canção de Zeca Afonso. Ou que se desalentem as árvores nos jardins ao som de Queixa das almas jovens censuradas, esse encontro iluminado de Zé Mário Branco com Natália Correia.
Festa é festa! Mas caramba! Depois de ti, Tu levaste a minha vida, Coração perdido, Quem era eu sem ti, Se acordo e tu não estás!? Não será impactar demasiado? Não será exigir demasiada resiliência ao público? E ocorre-me: distribuem kleenexes ao portão?
Termino com uma sugestão. Só uma. Uma chula popular e alegre. Trata-se de uma adaptação assinada por Fausto e Sérgio Godinho, e foi em tempos cantada por Sheila Charlesworth — na época, Sheila, simplesmente. O refrão tem uma actualidade que dói: “Para melhor está bem, está bem,/ para pior já basta assim/ Para melhor está bem, está bem,/ para pior já basta assim”. E siga o baile!
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