O ataque à ADSE – mistério ou conspiração?

Por razões ideológicas, a ADSE continua a besta negra, a mal-amada, apesar de funcionar bem e dar boas respostas. Gigantesca será a responsabilidade de quem der cabo dela.

A ADSE é um bom sistema público de saúde. Indiscutivelmente. Qualquer inquérito aos seus quase 1.300.000 beneficiários o confirmará. Por isso, não há idoneidade nem razoabilidade nos ataques que, ano sim, ano não, lhe são feitos por alguns construtores (ou manobradores?) das políticas públicas na saúde. Os abalos que infligem são filhos de três is: ideologia, inveja, irresponsabilidade.

Criada em 1963 como Assistência na Doença aos Servidores do Estado, corresponde a um seguro público de saúde atribuído aos funcionários públicos e suas famílias como benefício social. No sector privado, são normais e variados: os fringe benefits – completam o quadro remuneratório, sem ser remuneração.

Instituído o Serviço Nacional de Saúde em 1979, subiu a pressão contra a ADSE e ainda não terminou. A ideia que combate a ADSE é simples: seria privilégio de uns poucos (a função pública), pago por todos (os impostos); os subsistemas são para encerrar, tudo concentrando no SNS.

Além de extremista, o pensamento é disparatado. Ao partir da inveja pelo instrumento ADSE, confirma, afinal, que a ADSE é boa – e não faz sentido acabar com o que é bom, apenas com o mau. Apliquemos o sábio ditado pragmático inglês: if it works, don’t fix it. Se funciona, não consertes – muito menos acabes com ele.

Com os olhos de hoje, a ideia é populista: atiça-se a um alvo “privilegiado” (os funcionários) e, em nome da igualdade, impõe-se o comunismo de uniforme (o SNS). A maior pena é, em picos cruciais, não se ouvir outros políticos do sector ou líderes partidários marcarem firme posição ideológica contrastante, defendendo a ADSE contra os excessos da ideologia esquerdista, talvez enleados no estigma contra o funcionalismo que, à direita, assentou arraiais nas linhas e entrelinhas do discurso.

O que o Estado tem de fazer é entender a bondade do mecanismo ADSE e ampliar o seu alcance. Nem os ataques ao “subsídio orçamental” faziam sentido: se os impostos pagam as remunerações dos funcionários, por que não pagariam o custo de um complemento? O argumento, aliás, já não vale: a contribuição individual foi agravada e multiplicada por sete ao longo dos anos, passando de 0,5% para 3,5% da remuneração. Hoje, a ADSE em nada depende dos impostos.

Igualdade não é igualitarismo. Desde que o Estado assegure a todos o acesso aos cuidados de saúde, num quadro universal e geral, tendencialmente gratuito, o direito constitucional está garantido. E, para assegurar esse direito, o Estado pode lançar mão de instrumentos distintos e não de um só, qual fosse o SNS, entendido, de modo unicitário, como a prestação directa de cuidados de saúde pelo Estado, através de agentes do Estado em estabelecimentos do Estado geridos pelo Estado.

A ADSE é um seguro público de saúde – por que diabo haveria de ser excluída do painel de instrumentos elegíveis pelo Estado? Por mim, entendo que as deduções fiscais de gastos com saúde eram outra forma de realizar o “tendencialmente gratuito”. O cidadão que pagou por cuidados de saúde era reembolsado de parte dos gastos, aquando do IRS anual. Por isso, sustentei que o corte massivo das deduções que, com a crise, começou no fim dos anos Sócrates e continuou nos anos da troika é inconstitucional: impôs um retrocesso social acentuado na saúde, ao cortar uma das vias de realizar o princípio constitucional do “tendencialmente gratuito”.

O Estado tem três instrumentos: a prestação directa pelo SNS, as deduções fiscais em IRS e o(s) seguro(s) público(s) de saúde. Quando o SNS está – e estará sempre – debaixo de enorme pressão, por que deveria prescindir dos outros?

A ADSE é um modelo de seguro que merece ser protegido, tais as virtualidades que tem. Não são só os serviços que presta. Mas outras características notáveis, que fazem da ADSE uma presença positiva no espaço dos seguros de saúde, até por ser uma presença atípica. Primeiro, o prémio do seguro ADSE não decorre dos riscos cobertos, mas da remuneração do funcionário, havendo ainda isenções – ou seja, diversamente do usual, tem um regime social de progressividade: pagam menos os que ganham menos, pagam mais os que ganham mais. Segundo, não há período de carência, nem limite do capital seguro, cobrindo aquilo que for, quando for. Terceiro, não há limite de idade para aderir, nem se pode recusar ou cancelar coberturas, seja total ou parcialmente. Quarto, os tratamentos, em regra, não dependem de autorização. Quinto, a protecção é extensível ao núcleo familiar.

É incompreensível o rancor surdo contra a ADSE quando, desde 2014, os custos são integralmente suportados pelos beneficiários e não pelo Estado, isto é, não recebe um cêntimo dos contribuintes. É primarismo bacoco desprezá-la porque não seria suficientemente “de Abril” e o SNS é que seria a “conquista de Abril”. A Ponte Salazar foi renomeada Ponte 25 de Abril, ninguém se lembrou de a demolir. A ADSE realiza fins conformes aos princípios constitucionais da política de saúde e os seus beneficiários pagam a ADSE e ainda, como qualquer contribuinte, para o SNS.

Agora, rebentou novo pico crítico: a ruptura entre hospitais privados, a que a maioria dos beneficiários recorre, e a ADSE. O conflito é espoletado pela interpretação das convenções, com tabelas muito complexas, bem como por conversas e desconversas a respeito do futuro. Será dano enorme para os beneficiários se deixarem de ser atendidos onde o faziam – o que acontecerá aos muitos que não têm alternativa –, e um aumento brutal da pressão sobre o SNS a rebentar pelas costuras. Não sei se o Governo se preocupa com isso. Parece vir tudo na mesma onda ideológica da nova Lei de Bases da Saúde.

A verdade é que, apesar de a ADSE ter contas em dia e já não depender do Orçamento, nunca se sentiu, desde 2016, um alívio da pressão larvar contra a ADSE e os seus doentes: mais exigências burocráticas, sinais de mal-estar, retirada consecutiva de alguns médicos – anunciava-se a borrasca. Por razões ideológicas, a ADSE continua a besta negra, a mal-amada, apesar de funcionar bem e dar boas respostas. Gigantesca será a responsabilidade de quem der cabo dela.

A ADSE deve ser afirmada como um dos pilares do sistema público de saúde e a inscrição voltar a ser obrigatória para os funcionários públicos, como fringe benefit de todos, sempre inclusivo do núcleo familiar directo, em condições de custo a regular. E a abertura a outros não deve prejudicar o modelo, nem a sua sustentabilidade, sendo negociada com prudência e em pacote, em condições homólogas.

A ADSE não pode continuar neste clima de morte anunciada. Deve negociar-se bem, claro e firme as convenções de prestação, mas banir da conversa expressões como “cartel organizado”, “gula”, “meter a mão”, “chantagem”, “guerra pelo lucro”, que são indignas do sector e de qualquer parceria. Tem de haver esclarecimentos claros – o pleonasmo é de propósito. Nada pode ser escondido neste longo enredo de mistério e conspiração. Importa saber tudo o que se passa e tudo o que realmente se pretende. É preciso repor a confiança.

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