Do natural e do desnaturado

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Herdeiro da única dinastia da alta finança portuguesa, tem-se empenhado, particularmente nos últimos anos, em dar um peso ainda maior ao nome da família. No século XIX, o ilustre fundador do grupo e seu bisavô, filho de “pais incógnitos”, seria baptizado José Maria [a madrinha foi Nossa Senhora] Espírito Santo [o padrinho, a Santíssima Trindade] Silva [que caiu mais tarde, com a banca]. Foi um homem muito trabalhador, admirado por todos. No século XXI, o bisneto Ricardo inventou um novo apelido: D. Inércia [a madrinha é a Justiça Fiscal para os ricos]. Um homem muito trabalhador que emprestou a todos. E de todos levou emprestado e não te preocupes que alguém há-de pagar.

Ricardo Salgado (Cascais, 25 de Junho de 1944), também conhecido como “o banqueiro do regime”. Ou o “cidadão sob escuta no escândalo Monte Branco mas não é arguido, atenção, é não-arguido, já pagou tudo, esqueceu-se de declarar mas a Procuradoria-Geral da República tem a honra, o dever de esclarecer que esqueceu-se, prontos, acontece a alguém olvidar-se de um total de 26 milhões no estrangeiro, mas para isso é que os governos fazem três amnistias e a gente obedece, sentidas desculpas ao sr. dr. por leituras maldosas das nossas investigações, longa vida a V.Exa e a melhor sorte nos processos criminais das próximas décadas lá no estrangeiro é o que lhe desejamos todos por cá, olhe que isto vem do coração, sr. dr.!”

Salgado, Ricardo. O colosso financeiro e comercial que conquistou o mundo com a sua candura, em 2014. Foi tão lindo, tão lindo, que até as holdings e os spreads se comoveram. Um filme de família para menores de seis anos. As contas da internacionalização — “um inêxito da alavancagem” como se diz hoje em dia, e as investigações criminais no Luxemburgo anunciadas esta semana, etc. — provaram que a Espírito Santo Internacional escondeu 1,2 mil milhões de euros de dívidas em 2012.

Ai credo, mas como? Foi uma “negligência muito grande da administração da ES International”, a holding de topo, da qual Ricardo Salgado faz parte. A área não financeira “perdeu o pé no meio desta crise”. Ok, ok, e então?... Estas “falhas”, garantiu ele ao Jornal de Negócios, não levaram ao enriquecimento ilícito e são resultado apenas da “incompetência”.

Ah bom, fica-te bem dizeres isso, homem, nem tudo é perfeito mas o assunto está esclarecido. Continua. Já uma vez reergueste no estrangeiro o teu banco, quando foi nacionalizado pelos comunistas em 75! Aliás, queres ser Presidente Não Executivo do Espírito Santo Finantial Group até 2020? Sim? Queres deixar possesso o vaidoso do primo José Maria Ricciardi? Combinado.

Até porque foi controlado o “risco de contágio”, como diz o Banco de Portugal, esse grande placebo da banca. Faz lembrar a conversa do ministro Teixeira dos Santos (foi pena o vosso TGV e o Aeroporto, mais um bocadinho e avançava-se para um futuro financeiro ainda mais empolgante...).

Como é que dizia o outro? “Quem faz desaparecer um tostão tem de o pagar. Quem faz desaparecer um milhão temos de o ajudar.”

Voltando ao passado, não esquecer o avô de Ricardo, o primeiro Ricardo. Filho do fundador José Maria do Espírito Santo Silva (este tido como um discreto republicano), Ricardo E.S. foi notável homem de negócios, desportista, jogador de bridge, apoiante de Salazar e “banqueiro do Estado Novo”. Na sua casa de Cascais, recebeu em 1940 o outrora Eduardo VIII, rebaixado a Duque de Windsor depois de abdicar do trono (olha outro...) de Inglaterra, além de conhecido simpatizante da ideologia nazi e admirador de Hitler.

E de novo mais atrás, à raiz de tudo. O bisavô do actual CEO do BES começou como vendedor de lotarias e chegou a banqueiro. Durante muitos anos fez sozinho todo o expediente do escritório. Soube crescer no meio da trapalhada e das crises financeiras e políticas (não é de agora) como a de 1891, ano do ultimato inglês. Como escreve Carlos Alberto Damas, no seu estudo Espírito Santo e Silva, de Cambista a Banqueiro (rev. Análise Social, 2002), sendo um chamado “filho natural” (pais incógnitos, talvez filho de um nobre) que ganhou fortuna, era “conhecido como homem modesto, de grande discrição, vivendo sem aparato ou vaidade”. O estudo recupera o que disse um amigo sobre José Maria. O director da Associação José Estêvão, uma das várias agremiações de protecção à infância de que o fundador do BES foi benemérito, disse na cerimónia de descerramento do seu retrato: “Espírito Santo e Silva, como comerciante de lotarias e devido à sua muita seriedade e muita dedicação ao trabalho, conseguiu depois de distribuir largamente o bem em toda a sua vida, não negando o seu auxílio a qualquer obra de caridade que se lhe deparasse, legar à sua família além de meios de fortuna — o que é alguma coisa — um nome honrado — o que é muito, o que é tudo — o que é o melhor e mais nobre dos títulos que se podem herdar.”

Mas as tradições dos títulos andam um pouco flutuantes, talvez culpa do mercado. Em 1920 (cinco anos depois da morte de José Maria), surgia o Banco Espírito Santo SARL. Em 2014, esperam-se novidades do Banco Espírito Santo SSRS (Sociedade de Sarilhos de Ricardo Salgado).     

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