A nova tendência é comprar e não pagar

Os números não mentem e existe roupa, em todo o mundo, que serve para vestir as próximas gerações. Da mesma forma, todos temos roupa que já não usamos e, até, peças por estrear.

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Há que "definir um estilo que se quer único, mas não igual ao de todas as pessoas" Andrea Piacquadio/pexels
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Imaginem entrar numa loja de moda e o recibo das compras ser zero porque tudo o que está disponível é gratuito. Sonho? Quase. Existe e é, certamente, a próxima grande cena. A ideia existe e já se concretizou. Partiu de dois designers, nos Países Baixos, empenhados em dar o seu contributo para uma moda mais sustentável. A iniciativa conta com o apoio de empresas, organizações públicas e o município de Tilburg, cidade no sul do país, onde o projecto começou.

Porque acreditam que há roupa que chegue para todos, estes designers decidiram criar um novo conceito: as pessoas doam as suas roupas e estas ficam disponíveis numa loja, para quem as quiser levar. Um passo em frente em relação ao conceito de moda em segunda mão que, até aqui, supunha a atribuição de um preço a cada peça. Neste caso, não há preço, apenas o desejo porque, quando compramos, temos, inevitavelmente, uma experiência de prazer. É físico, libertam-se hormonas e o nosso corpo é inundado por uma sensação de bem-estar.

E se pudéssemos sentir o mesmo mas sem gastar, sem contribuir para o excesso de produção e consumo, a poluição e o descarte excessivo que faz acumular toneladas de desperdício têxtil? Há já várias lojas assim nos Países Baixos, e lojas pop up em locais de grande circulação, para contrariar esta tendência de produção e consumo de roupa e produtos têxteis. Chegaram, entretanto, a Inglaterra.

Os números não mentem e existe roupa, em todo o mundo, que serve para vestir as próximas gerações. Da mesma forma, todos temos roupa que já não usamos e, até, peças por estrear. Porque não trocar com amigos, partilhar com a comunidade, transformar o valor de uma peça que, para nós, perdeu o valor — independentemente do seu preço — e que pode ser altamente valorizada por outra pessoa?

É também esse o objectivo deste projecto que, através da reutilização, dá uma nova vida à roupa que temos no nosso armário e mantém o seu valor ao longo do tempo, numa lógica contrária à da fast fashion. A constante renovação desvaloriza o que já temos e faz-nos desejar o que ainda não temos, tornando cada nova peça quase inacessível, difícil de obter, garantindo, assim, através da relação entre o desejo, a necessidade de fazer parte e a escassez, o segredo do sucesso. O paradoxo da escolha em relação à indisponibilidade (temos muito por onde escolher mas poucos exemplares de cada opção).

A estratégia da escassez é um clássico do marketing que gigantes como a Inditex aplicam com mestria. Lançam novos produtos, promovem-nos, mas estão indisponíveis nas lojas, fazendo com que, no instante em que os encontramos, os compremos porque sabemos que depois não estarão disponíveis. Esta estratégia garante grande rotatividade, consequentemente, uma produção constante que coloca, mensalmente, novas peças de roupa em cada loja, quase como se tivéssemos várias colecções em cada estação. Cada peça é produzida em quantidades limitadas, o que é contrário à capacidade de produção em massa destas marcas mas que garante que rapidamente se esgotem.

Ora, o que esgota provoca maior desejo, fazendo com que a compra seja de impulso porque sabemos que, não comprando, quando voltarmos à loja, já não há. Multipliquemos isto por várias marcas e milhões de pessoas. Facilmente percebemos que a raiz do problema está na manipulação que estas marcas fazem para garantir o seu sucesso comercial e contínua produção, ao mesmo tempo que aumentam o número de peças de roupa que acabam em aterros ou na foz de rios, algures em países em vias de desenvolvimento.

A moda é estilo e o estilo depende sempre de quem somos e como somos, da construção da nossa identidade que também se faz através da roupa. Para isso, precisamos saber quem somos, conseguir definir as nossas características, o que nos define através da roupa e que peças contribuem para essa mesma definição. É um processo ao longo da vida para o qual as marcas de fast fashion não contribuem, por nos inundarem com escolhas e opções, garantindo que só nos definimos através da última colecção.

Na verdade, existe roupa a mais e a opção pela troca ou segunda mão é uma nova forma de encarar o nosso guarda-roupa e definir um estilo que se quer único, mas não igual ao de todas as pessoas que foram a tempo de comprar o casaco da moda. É, sobretudo, um estilo que demora muito tempo a chegar ao aterro porque perdura, sem perder o seu valor. Mais estilo, comprando menos, comprando melhor.

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