No Nobel Harold Pinter nem tudo o que parece é

Especialistas, encenadores e actores estiveram em Lisboa para falar sobre o Nobel da Literatura. Do Brasil veio a história do confronto entre a ditadura e um dos textos mais perturbantes de Pinter, The Homecoming

a Harold Pinter começara a escrever nos primeiros anos dessa década, dando início a uma rica bibliografia dramática. Fernanda Montenegro era já uma actriz consagrada, cuja beleza e virtuosismo provocava enchentes nos teatros brasileiros. Ziembinski era também um dos nomes maiores das artes cénicas, actor e encenador polaco que emigrara para o Brasil nos anos 40. Millôr Fernandes, que então tinha 44 anos, granjeava sucesso pelos seus múltiplos talentos (cartoonista, pintor, escritor e tradutor). Em 1967, quando a Companhia Torres e Brito Produções de Cena decidiu encenar no Rio de Janeiro a peça The Homecoming (A Volta ao Lar, tradução brasileira), escrita pelo autor britânico poucos anos antes, podia adivinhar-se algum burburinho. Mas em plena ditadura militar, com a censura já organizada (e maioritariamente constituída por mulheres) e as políticas de repressão em marcha, o texto de Pinter foi uma provocação, gerando uma controvérsia política e social que se prolongou até 68, ano em que o espectáculo foi apresentado em São Paulo.
Em Pinter nem tudo o que parece é. Quando os cariocas acorreram à estreia de A Volta ao Lar, muitos deles cativados pela fulgurante Fernanda Montenegro, mal podiam supor o destino que o autor britânico dá àquela personagem. Sob a capa da banalidade (a relação de Ruth com o marido, o pai deste e mais dois irmãos) descortina-se uma perturbante violência envolvendo um jogo entre dominados e dominadores - significa isto que os homens transformam Ruth numa prostituta, mas é ela que, através do seu corpo, alcança o estatuto de dominadora.
A peça foi um murro no estômago do público carioca: a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde), movimento feminino católico e conservador, atacou ferozmente o espectáculo; o jornal O Globo, então aliado do regime ditatorial, publicou um editorial expondo as mais ferozes acusações contra Fernanda Montenegro; e todas as noites o elenco se confrontava com os protestos, aos berros, de uma mulher sentada na plateia.
À procura de bombas
Quando A Volta ao Lar rumou para São Paulo, um ano depois, nada melhorou. Pelo contrário. Até ao dia da estreia, os produtores não descansaram - as negociações com a censura faziam-se em Brasília e a companhia acabou por "sacrificar" alguns excertos do texto. A peça não foi proibida pelo regime, mas o elenco não foi poupado a mais contestação. O Globo voltou à carga com mais um editorial, desta vez alvejando Millôr Fernandes, e não havia noite em que o espectáculo começasse a horas: o então conhecido grupo bombista Comando de Caça aos Comunistas obrigava a que a companhia vistoriasse o teatro de uma ponta à outra. Só depois o público entrava na sala.
A estreia do teatro de Harold Pinter (1930) no Brasil não aconteceu em 1967. Quatro anos antes, fora levado à cena The Caretaker (O Encarregado). Mas este espectáculo não gerou a polémica nem sofreu os ataques de A Volta ao Lar, disse ao P2 Maria Helena Werneck, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma das oradoras do colóquio Harold Pinter: Encontros, que decorreu nos dias 7 e 8 na Faculdade de Letras de Lisboa, promovido pelo Centro de Estudos de Teatro.
Na sua comunicação, Werneck partiu da história em torno daquela obra de Pinter para traçar uma ponte com outras duas peças, ambas de 1967: Navalha na Carne, de Plínio Marcos, também objecto de censura, e O Rei da Vela, de Osvaldo de Andrade, peça proibida e autor proscrito pela ditadura. Contudo, para esta especialista, foi Pinter "quem sofreu mais" no Brasil, atacado pelo público, pela crítica e pelo regime. "Incomodou mais devido à incongruência que existe nas suas peças entre a imagem e as palavras", explicou, notando que o escritor, Nobel da Literatura em 2005, "tem uma dramaturgia que explora os limites do realismo". Não é fácil, por isso, categorizar o teatro de Pinter.
Igual às personagens
Para Frank Gillen, da Universidade de Tampa, na Florida, "uma das melhores coisas em Pinter é o facto de não ser possível categorizar a sua obra", uma vez que o escritor gosta de experimentar diferentes géneros. "Às vezes uma peça começa com uma imagem, outras vezes ele não nomeia as personagens", diz Gillen, que há duas décadas criou The Pinter Review, revista exclusivamente dedicada ao trabalho do escritor e na qual já foram publicados os manuscritos de A Volta ao Lar. "É uma das coisas de que mais me orgulho", diz Gillen, também um dos oradores convidados para o colóquio.
Amigo pessoal do dramaturgo, o norte-americano definiu-o como sendo "muito parecido com as suas personagens", pelos seus silêncios, a economia das palavras, a introversão. "E não gosta que lhe peçam para explicar as suas peças", acrescentou, "porque entende que deve dar espaço para a interpretação individual".
Tendo escolhido falar sobre o humanismo e a vitalidade na obra dramática de Pinter, Frank Gillen considerou ainda ao P2 que "há um antes e um depois de Pinter": "Antes, o teatro tinha um princípio e um fim explícito. O que acontece nas peças de Pinter é que tudo é muito mais próximo da vida real."

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