Artista que se diz plagiado quer memorial a Zeca em Setúbal alterado ou desmantelado

Autor de monumento a José Afonso reitera originalidade da sua obra e recusa ter imitado memorial a Nelson Mandela. Câmara de Setúbal está a analisar pedido do criador sul-africano.

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A Câmara de Setúbal diz estar a analisar o conteúdo da missiva enviada por Marco Cianfanelli Câmara Municipal de Setúbal
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Depois das acusações de plágio, chega a intimação. O artista sul-africano Marco Cianfanelli quer que o memorial a José Afonso, inaugurado nos primeiros dias deste ano, na zona ribeirinha de Setúbal, seja sujeito a “substanciais ajustes e alterações” ao conceito e design, de forma a que ganhe uma nova configuração, ou seja desmantelado. Caso contrário, o criador de um trabalho de homenagem a Nelson Mandela, inaugurado em 2012, no seu país, considera seriamente avançar com uma acção judicial contra o autor da peça evocativa de Zeca, o artista Ricardo Crista, e a Câmara Municipal de Setúbal. O ultimato foi feito esta quinta-feira, através de uma carta enviada a Crista e à autarquia, a que o PÚBLICO teve acesso.

Contactada pelo PÚBLICO, a câmara diz ainda estar a analisar o conteúdo da carta. Mas Ricardo Crista sublinha, desde já, que a sua intenção não passa por fazer qualquer alteração ao trabalho inaugurado, a 6 de Janeiro, na Praia da Saúde. “Não há argumento para desmantelar ou alterar uma obra que é muito diferente. Em todo o caso, a obra já não é minha, é da comunidade, por isso, a câmara é que tem a última palavra”, diz o artista setubalense, admitindo, todavia, a possibilidade de a edilidade poder vir a retirar o código QR, colocado junto à sua criação e através do qual se fará alusão à influência de Cianfanelli. O que responde, aliás, a uma das exigências do artista sul-africano.

“Insisto firmemente que retirem o meu nome, e quaisquer referências a mim ou às minhas obras, do código QR do monumento de Afonso, e de qualquer outra documentação que tenha gerado, para si, para a Câmara de Setúbal ou qualquer outra fonte, com efeito imediato, e que evite fazer qualquer referência a mim e às minhas obras de arte no futuro”, insta Marco Cianfanelli, na missiva, afastando a possibilidade de uma resolução amigável para a disputa sobre o alegada cópia conceptual da sua obra Release, instalada há uma dúzia de anos na comuna de Howick, na província sul-africana de KwaZulu-Natal, para marcar o meio século da prisão de Nelson Mandela.

O caso da suposta apropriação indevida, por parte de Ricardo Crista, do trabalho de Cianfanelli surgiu depois de, na sequência da inauguração do Memorial a José Afonso, terem começado a surgir denúncias nas redes sociais dando conta de uma grande similitude conceptual entre este e a obra Release. Tais acusações chegaram ao conhecimento de Marco Cianfanelli através de emails enviados a partir de Portugal. Contactado então pelo PÚBLICO, o artista sul-africano confessou-se perturbado com as parecenças entre ambos os trabalhos, resultantes da utilização de uma similar técnica de op art (arte óptica), ainda para mais fazendo também uso da sua interacção com a paisagem envolvente.

O memorial a José Afonso, tal como o de homenagem a Nelson Mandela, resulta da colocação de estacas metálicas no solo, as quais são trabalhadas de forma a que, recorrendo ao perfil de uma imagem fotográfica, e sendo observadas a partir de um determinado ângulo, permitam ver a silhueta de uma figura humana. Uma abordagem que se socorre de técnicas anamórficas, ou seja, que se baseiam na ilusão visual. Quando surgiram tais alegações, Ricardo Crista reconheceu ao PÚBLICO a influência do trabalho de Cianfanelli na utilização desta técnica, bem como de outros artistas plásticos, mas afastou as suspeitas de plágio. Uma posição que mantém, recusando-se, por isso, a aceder às exigências agora feitas para que altere ou retire a sua criação.

“A acusação de plágio é muito forte. Não há plágio nenhum. É verdade que ambos usamos a op art e que recorremos à ilusão visual, mas estamos a falar de uma estratégia diferente. A partir daí, cada um faz a anamorfose que pretende”, afirma Ricardo Crista, fazendo alusão ao facto de, por exemplo, e ao contrário daquele que o acusa, ele ter recorrido a um “ondulado” na colocação das estacas metálicas que enformam o memorial por si concebido. Por isso, considera como “descabida” a acusação de Cianfanelli.

Este não tem, porém, dúvidas de que Crista terá ultrapassado uma linha que não devia. “Embora uma citação ética e válida possa muito bem aludir a aspectos do trabalho de outra pessoa à qual se está a referir - no tom ou ecoando, subtilmente, alguns elementos visuais desse outro trabalho -, ela ainda precisaria, em última análise, de criar algo notavelmente diferente em sua intenção, conceptualmente e visualmente, da obra original referenciada”, escreve na carta agora redigida.

“A sua peça de [José] Afonso não presta homenagem – a mim mesmo ou a qualquer outro artista que você tardiamente refere como influências, ou, possivelmente, em última análise, ao próprio Afonso”, escreve, antes de acusar: “Em vez disso, de forma decepcionante e bastante insultuosa, pegou nas minhas ideias e designs, sem consulta, permissão ou responsabilidade, para criar algo que não é novo e original, mas uma pobre repetição do aclamado trabalho conceitual de outra pessoa”.

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