Para onde nos levam tantos relógios?

Um homem coleccionava objectos do passado a pensar no futuro. Uma luta contra o tempo. Seremos suficientemente velozes? Ouçam o que dizem os relógios.

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A partir do momento em que entramos no palacete, começamos a ouvir o tiquetaque dos relógios. São muitos e parecem lançados numa corrida enlouquecida contra o tempo. O que, num único relógio e num único som de tiquetaque, representa rigor absoluto, quando multiplicado por mil relógios e mil tiquetaques, parece antes sinal de que o mundo acelerou e começou a girar em diferentes direcções. O que sentimos no palacete Medeiros e Almeida é que, decididamente, o tempo não parou — estilhaçou-se.

António Medeiros e Almeida foi um importante empresário e um apaixonado coleccionador. Era — ouvimo-lo dizer num pequeno filme apresentado à entrada da sua casa-museu — fascinado pelo tempo, “talvez a única coisa” que nunca conseguiu controlar. Por isso, encantava-se com os mecanismos de relógio e reuniu a impressionante colecção de relógios que podemos ver numa das salas do rés-do-chão do palacete. Entre eles, um em prata, cristal de rocha, lápis-lazúli e pedras semipreciosas que foi oferecido à imperatriz Sissi da Áustria pelo seu primo Luís II, rei da Baviera.

O palacete, na esquina da Rua Rosa Araújo, junto da Sociedade Nacional de Belas-Artes e da Cinemateca Portuguesa, foi mandado construir em 1896 por um advogado lisboeta, pertence mais tarde à Nunciatura Apostólica e é comprado por Medeiros e Almeida em 1943.

O empresário vive aí com a mulher, Margarida Pinto Basto, até ao início dos anos 1970, altura em que se muda para uma casa ao lado e se dedica a preparar o palacete (nomeadamente fechando o jardim e abrindo novos espaços no interior) para albergar a sua extraordinária colecção de arte, que ao longo dos anos crescera muitíssimo. O objectivo de Medeiros e Almeida, que não teve descendentes directos e morreu em 1986 aos 90 anos, foi sempre o de criar uma casa-museu, oferecendo ao país a possibilidade de ver as peças que ele reuniu toda a vida.

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Casa-Museu Medeiros e Almeida, Rua Rosa Araújo 41, Lisboa Telf: 21 354 7892 Horário para visitas: de segunda a sexta-feira, das 13h às 17h30; sábados, das 10h às 17h30

O fascínio pelo controlo do tempo poderá estar ligado ao seu, igualmente irresistível, fascínio pela velocidade. Estudou Medicina, mas gostava era de carros e tinha ousadia suficiente para, num país em que muitas estradas eram ainda mais bem adaptadas aos burros do que aos automóveis, ter-se tornado importador da marca inglesa Morris, tendo aberto o primeiro stand da Morris na Rua da Escola Politécnica.

E, já que falamos em velocidade, porque não aviões? Medeiros e Almeida, que era filho de um açoriano, foi um dos fundadores da SATA e comprou a maioria do capital da Aero-Portuguesa, a primeira companhia aérea nacional, que fazia as ligações entre Portugal e Marrocos — lamenta apenas, como diz no documentário no hall da casa-museu, que no filme Casablanca o modelo do avião não seja o dos seus, que eram os que na realidade, na II Guerra Mundial, transportavam quem, a partir do Norte de África, queria fugir para a América via Lisboa.

Mais do que descobrirmos a colecção reunida por Medeiros e Almeida, a visita à casa-museu é uma forma de conhecermos melhor este homem e perceber como se vivia num palacete junto à Avenida da Liberdade nos anos 1950

60. Atravessamos as salas e salões, entramos nos quartos e até numa casa de banho onde encontramos aquela que terá sido uma das primeiras máquinas para fazer ginástica em casa importadas em Portugal.

É um exercício de voyeurismo consentido, este em que espreitamos a revista de aeronáutica deixada em cima de uma mesa, a bengala e o chapéu de homem como que esquecidos sobre uma cadeira, a caixa dos óculos junto às revistas de moda dos anos 50 na salinha, os frascos de perfume e os pentes na prateleira de pedra da casa de banho, ou o robe sobre a cama, como se ainda esperasse que o dono o viesse buscar naquela mesma noite, antes de se deitar.

Depois, lá em baixo, a sala de jantar — a mesa posta para um jantar que não vai acontecer, mas que nos transporta para um que aconteceu muito tempo antes. A 16 de Abril de 1964, o casal Medeiros e Almeida recebeu neste salão o príncipe Rainier e a princesa Grace do Mónaco. A folha de papel em que o casal português planeou a disposição dos lugares à mesa ainda pode ser vista aqui, uma memória escrita a lápis do que terá sido um jantar memorável, que terminou com Amália Rodrigues a cantar fados para os ilustres convidados.

E, ao lado da sala de jantar, o pequeno escritório onde Medeiros e Almeida tinha a sua colecção de livros de arte. Sobre uma mesa, o álbum de desenhos da rainha D. Amélia: Mês dessins. Mês endroits préférés

Art et Archeologie, em pergaminho, papel, pele e marfim, guardando flores, animais, objectos, lugares. Uma forma também de a rainha lutar contra a passagem do tempo. Como fez Medeiros e Almeida. Mas aqui, à nossa volta, o tempo não pára. Tiquetaque, tiquetaque, e, de repente, um dos relógios dá as horas. Tantos segundos, tantos minutos, tão rigorosamente contados. Não sabemos para onde vão, para onde nos levam. Para o futuro? Ou para o passado?     

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