A vida desde 1820

Há 100 anos os portugueses viviam menos 23 anos do que os noruegueses...
...agora, a diferença é de apenas dois anos. Historiadores juntaram-se à OCDE para um projecto que faz estimativas sobre níveis de bem-estar no mundo.
De 1820 para cá.

Nas primeiras décadas do século XIX a esperança de vida na Europa Ocidental rondava os 33 anos e quase chegou aos 80, em 2000. A população mundial ficou, em média, oito centímetros mais alta. E o planeta, que era habitado apenas por mil milhões de pessoas, viu esse número multiplicar-se por sete. A percentagem de pessoas alfabetizadas passou de 20% para 80%. Mas a riqueza, sendo muito maior, continua concentrada — o mundo, visto globalmente, não se tornou num sítio com menos desigualdade na distribuição de rendimentos. Aliás, na maior parte dos países as desigualdades têm vindo a crescer, desde os anos 80 do século XX. São conclusões de um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).

Como era a vida em 1820 e como é hoje? O estudo dá conta (em rigor, mede) o que se terá passado nos últimos quase 200 anos no que diz respeito ao bem-estar das populações. Chama-se “How was life? — Global Well-Being since 1820”.

Apresentado no início do mês, é descrito como o culminar de um trabalho com características inéditas de um grupo de especialistas em História da Economia, sobretudo holandeses e alemães. Editado por Jan Luiten van Zanden, Joerg Baten, Marco Mira d’Ercole, Auke Rijpma, Conal Smith e Marcel Timmer, concentra-se essencialmente em dez indicadores, calcula médias para oito regiões do mundo e para a economia mundial como um todo. E olha para quase dois séculos ao longo dos quais houve duas guerras mundiais, a Grande Depressão, ditaduras caíram, democracias consolidaram-se, países deixaram de existir, nasceram outros...

O “How was life” resulta da colaboração da OCDE com o projecto holandês Clio Infra — uma plataforma onde se pode obter informação sobre a evolução de dezenas de indicadores, para todos os países do mundo, ao longo dos últimos séculos. É aqui que é possível obter dados específicos para Portugal.

O país perdeu terreno na primeira metade do século XIX e na segunda metade do século XX “foi dos que mais cresceu, passando de ‘medianamente desenvolvido’ para ‘altamente desenvolvido’”, nas palavras de Nuno Valério, investigador do Instituto Superior de Economia e Gestão, em Lisboa.

Foi a Nuno Valério, ex-presidente da Associação Portuguesa de História Económica e Social, que pedimos que nos ajudasse a perceber que retrato se pode fazer do país, nesta imensidão de dados de que parte este projecto — e que vão dos salários pagos aos operários da construção civil, no Japão, à desigualdade de rendimentos na China. Já regressamos a Portugal...

Africanos mais baixos

O salário real dos trabalhadores não qualificados, ajustado à inflação, cresceu, em média, oito vezes — 5,5 vezes em Portugal. Na verdade, o que os especialistas medem é quantos dias de subsistência básica assegura um dia de salário e diga-se: se na Europa Ocidental um dia de salário de um operário da construção civil chega, nos anos 2000, para cerca de 163 dias de subsistência básica, em Portugal paga pouco mais de 45.

O mundo rural mudou. A Argentina, com 30 cabeças de gado por cada mil habitantes era, em 1820, de longe, o país com mais gado por habitante do mundo. Em 2010, o topo do ranking pertencia ao Uruguai... com 3,5 cabeças por mil habitantes (o rácio português nem se aproxima, passou de 0,11 por cada 1000 habitantes para 0,13...)

A base de dados de que parte o estudo contém indicadores na área da saúde, educação, segurança, finanças, ambiente... Não foi sempre a crescer, longe disso. Literalmente. O relatório nota, por exemplo, como em certos estados africanos, caso da Somália ou de Moçambique, a população tem hoje, em média, uma estatura mais baixa do que no século XIX, ao arrepio da tendência registada no resto do mundo. A altura média da população é considerada no estudo um indicador da qualidade da nutrição, sobretudo na infância.

Já agora, a título de curiosidade, registe-se que segundo o “How was life?”, em 1820 os mais baixos, entre 28 países para os quais são apresentados dados, eram os mexicanos, com uma altura média de 1,60 metros, e os mais altos os norte-americanos, com 1,72 metros.

Em Portugal, a estatura média era 1,66 metros, há quase 200 anos, tendo passado para 1,72, no início dos anos 1980. Não são apresentados dados posteriores a essa data.

O PIB não é tudo

O “How was life?” é um projecto que parte de um pressuposto que tem vindo a fazer escola: calcular o PIB e a sua evolução não diz tudo sobre se as populações vivem melhor ou pior e nem sempre há uma correlação estatística clara entre o aumento da riqueza e a melhoria daquilo que hoje consideramos elementos importantes para uma boa qualidade de vida.

Veja-se a segurança: “As taxas de homicídio nos Estados Unidos têm sido relativamente elevadas ao longo dos últimos 200 anos”, exemplifica o relatório. E, no entanto, os Estados Unidos estão entre os mais ricos.

O PIB per capita é, contudo, “o ponto de partida natural para qualquer investigação histórica do bem-estar”, reconhece-se. E assim sendo, mais números: a média mundial aumentou mais de dez vezes desde 1820 — Portugal manteve-se bem acima da média mundial, como já estava na altura, mas o que o gráfico que traça a evolução ao longo das décadas mostra é que se foi afastando da média da Europa Ocidental.

Este projecto vale-se de dados de agências nacionais e internacionais (como o FMI, ou o Banco Mundial), mas, sobretudo, de trabalho académico produzido em todo o mundo, estudos, papers, grandes projectos de investigação internacionais, em diferentes áreas, da saúde à antropologia. Os historiadores produziram aquilo que classificam como “reconstruções históricas, estimativas e conjecturas”. De resto, nem todos os dados têm a mesma “qualidade”, alerta-se. O que é realmente valorizado são as tendências, a imagem de conjunto. Quem trabalha na área costuma dizer que “um mau dado é melhor do que nenhum dado”.

Nuno Valério explica: “Este projecto é extremamente interessante. Porque nos ajuda a saber como é que outras sociedades e, particularmente, os antepassados destas sociedades [em que vivemos], eram, em relação a coisas que consideramos essenciais para viver bem nos dias de hoje. Mas também é uma coisa muito complicada.”

“Estas avaliações e estes dados têm de ser muito engenhosamente construídos, o que significa que são estimativas, espera-se que razoáveis, mas com grandes margens de erro”, prossegue o professor, co-autor de obras sobre a história da economia mundial contemporânea e a história económica de Portugal. “Quando temos de fazer uniformizações de padrões, de unidade de conta, em períodos tão longos, há sempre margens de incerteza. Mas é um método absolutamente aceite pela comunidade científica. É assim que trabalhamos.”

Feita a explicação não se estranhe, portanto, disparidades aqui e ali face aos números oficiais, mais recentes, do português Instituto Nacional de Estatística, por exemplo. Nem se estranhe que nem sempre haja dados para todos os anos e todos os países. No site do PÚBLICO poderá encontrar alguns gráficos interactivos.

Portugueses viviam pouco

No impressionante retrato feito à evolução da esperança média de vida à nascença, por exemplo, verifica-se que em 1920 os australianos eram de longe os que mais tempo podiam aspirar a viver (61 anos de esperança média de vida à nascença), seguidos dos noruegueses (59).

Já os portugueses viviam menos 23 anos do que os noruegueses e menos 25 que os australianos, de acordo com as estimativas apresentadas no Clio Infra. Ou seja, a esperança média de vida em Portugal, em 1920 (o primeiro ano para o qual há dados para Portugal) seria de apenas 35,6 anos.

Os portugueses nascidos em 2000 já podem contar viver 76,87 anos, apenas um pouco abaixo da média da Europa Ocidental, que é de 79,7. E menos dois anos do que os noruegueses. É o último ano para o qual são disponibilizados números.

Outro indicador central neste estudo é o que mede a desigualdade da distribuição de rendimentos pela população. Em 1820, Portugal era, de acordo com os dados apresentados, um país particularmente desigual no que diz respeito à forma como estava distribuída a riqueza pela sua população — em 19 países da OCDE com informação, ocupava a 8.ª posição num ranking onde era a Bélgica o mais desigual de todos.

Em 1910, Portugal estava em 10.º lugar em 22. A Suécia era, nesta altura, o país mais desigual do pelotão.

A partir dos anos 1980 “a maioria dos países experimentam um aumento nos seus níveis de desigualdade”, mas com várias excepções. A Suécia, por exemplo, fez um percurso inverso e em 1990 estava entre os que tinham menos desigualdade. Portugal permanecia mal colocado (em 8.º lugar em 26 países).

Nuno Valério diz que não gosta de fazer comparações só com a Europa. “Vivemos no mundo. Há 200 anos os índios da América do Norte ou os aborígenes australianos ainda estavam completamente isolados, hoje em dia ninguém está isolado.” E se há projecto que permite situar o país no mundo é este “How was life?”.

Uma conclusão da análise passível de ser feita: “A maior parte da Europa está melhor do que nós, portugueses, mas quando olhamos para o mundo, a maior parte está pior do que nós.”

O país, em 200 anos

O percurso de Portugal, prossegue Valério, pode resumir-se então deste modo: “Na primeira metade do século XIX, Portugal ainda não era uma economia mundial, mas era uma economia euroatlântica que assentava na existência de uma colónia no Brasil que desaparece. Num certo sentido, os portugueses andaram meio século a ver se encontravam outra maneira de viver. E, por isso, esse é um período em que Portugal perde terreno, quer em relação à Europa, sobretudo em relação aos países mais desenvolvidos da Europa, quer em relação ao mundo, em média.”

Na segunda metade do século XIX o país continuou a perder terreno face a outros que estavam a crescer muito nessa altura, como a Alemanha, “mas, em média, em comparação com a Europa e, em média, em comparação com o mundo, aguentou-se bem”. O problema foi o processo de endividamento que acabou por se revelar insustentável e que conduziu à bancarrota parcial em 1892.

Em 1950, no segundo pós-guerra, “Portugal não está, em termos relativos, e sobretudo em relação à Europa, particularmente melhor do que estava 100 anos antes”, prossegue o investigador.

Mas depois, veio a segunda metade do século XX. “Com algumas transformações ocorridas na primeira metade do século XX, Portugal tinha criado, apesar de tudo, algumas condições para o desenvolvimento: em termos estruturais, a educação, o esforço que a I República fez para acabar com o analfabetismo; e depois, em termos conjunturais, a sorte que tivemos com a II Guerra — o país não participou e entrou imenso dinheiro”, desde logo o que resultou da venda do volfrâmio.

“Na segunda metade do século XX, Portugal é dos países que mais cresce se olharmos para o conjunto dos 50 anos”, diz Nuno Valério. “O PIB passa para o dobro da média mundial, a esperança de vida e sobretudo a mortalidade passa para valores espectaculares mesmo entre os países desenvolvidos, a instrução também aumenta, embora seja o pior de tudo (e continuamos a ser dos piores em termos de média de anos de escolaridade dos adultos). Se houve 50 anos que transformaram Portugal foram de facto a segunda metade do século XX.”

No mesmo período outros se destacaram: o Japão faz um percurso brilhante nessas cinco décadas. A China também começou “a subir, a subir” mas só a partir dos anos 80.

À entrada na União Europeia, Portugal respondeu, contudo, na opinião de Nuno Valério, com excesso de optimismo. “Como se, efectivamente, a capacidade de endividamento que a baixa das taxas de juro criou não tivesse limites.” Os dados dos “How was life” mostram como ao longo de décadas, Portugal se foi aproximando do grupo dos governos centrais mais endividados em percentagem do PIB. Em 2010, tinha a 5.ª maior dívida da OCDE (estavam pior a Itália, a Islândia, a Bélgica e os EUA).

A cronologia do projecto da OCDE termina em 2010. O que se seguiu é o nosso quotidiano.