A propósito dos modos como passamos o tempo ou o tempo passa (marcar o ritmo) resolvi falar da mais apaixonante experiência cultural que vivi no último ano: o Festival Folclórico de Parintins, uma ilha com 100.000 habitantes (recebe cerca de 50.000 visitantes durante o festival) no grande estado do Amazonas, no Brasil.
Iniciado (com formato que se foi alterando) em 1965, o festival realiza-se agora todos os anos no último fim-de-semana de Junho. Numa arena desenhada em forma de cabeça de boi, chamada Bumbódromo, em três noites consecutivas, as agremiações representativas do Boi Caprichoso e do Boi Garantido apresentam, cada uma, três espectáculos inéditos, cada um com duas horas de duração. A exibição reúne música (“Boi” também é uma forma musical), dança, canções, declamações e uma sofisticada cenografia composta por dezenas de “alegorias” — engenhosas construções cénicas animadas por uma multiplicidade de “efeitos especiais”. O espectáculo não envolve nenhum boi, animal vivo. No final das três noites um júri (sempre acusado, por certo justamente, de corrupção) atribui a vitória a um dos bois.
A origem da celebração é descrita de várias formas : festividade de origem religiosa oriunda do Nordeste; fábula mágica sobre a morte e ressurreição de um boi e a salvação de uma comunidade; criação, no início do século XX, de dois pequenos bois, brinquedos artesanais, por duas crianças que se tornaram figuras de referência local. As descrições disponíveis são intermináveis e contraditórias. Hoje em dia, o elemento mais forte é a valorização das especificidades culturais da Amazónia, “aldeia mística”.
Importa o que permanece: a alegria de “brincar de Boi” e a rivalidade entre os Bois.
O espectáculo oferecido pelos Bois-Bumbá reúne, de forma original, as características de três empolgantes experiências culturais: a ópera, o futebol e o Carnaval.
Ao falar de ópera recordo aproximações a encenações barrocas e, sobretudo, a experiência do “Ring” de Wagner, em particular quando se assiste às quatro óperas em sequência num curto período de tempo. Retenho, em comum, o império do ritmo, o arrebatamento da voz e o poder de atracção visual das cenografias. Sem sequer especular sobre convergências nos modos de combinação entre figuras reais e sobrenaturais, psicologias humanas e destinos transcendentais, deuses, heróis, feiticeiros, gigantes, mártires e meros humanos. Não sei quase nada sobre ópera mas ouso dizer que gosto de ver e ouvir Bryn Terfel (o meu Wotan). Já no caso do Boi, não hesito em enaltecer a voz de David Assayag, actual “levantador de toadas” (cantor) do Boi Caprichoso e, por certo, uma das mais belas vozes vivas no mundo.
Enfim, paixão. Com a vantagem de a música ser, por definição, uma coisa incompreensível, o que significa que pode (não) ser compreendida por todos.
O tópico da rivalidade conduz-nos ao futebol. A rivalidade entre os dois bois é tal que a pequena ilha de Parintins está, para quase todos os efeitos práticos, dividida em duas partes, em que imperam de um lado a cor azul e do outro a cor vermelha. É o único local do mundo onde a Coca-Cola é vendida em latas não apenas vermelhas mas também azuis. O Bumbódromo está dividido ao meio, ficando de um lado a “galera” do Caprichoso e do outro a “galera” do Garantido. Não se pode (mesmo) estar no meio de uma “galera” vestido com a cor do “Boi contrário”. Durante a exibição do seu Boi o respectivo público (também sujeito a pontuação, pois faz parte da apresentação) actua, acompanhando o espectáculo (de forma ainda mais intensa que o público do futebol, mesmo se considerarmos o público do Liverpool nas suas melhores tardes), enquanto a outra metade da bancada permanece em silêncio e sem iluminação. Contam-se histórias de prefeitos que mandaram alterar as cores nos semáforos e nas passadeiras para peões de acordo com as cores dos seus bois. A natureza lúdica do espectáculo não exclui uma radical rivalidade com elaboradas implicações políticas e financeiras.
Para ilustrar a dimensão dramática (“operática”) do futebol em geral bastará recordar a saga do Brasil na Copa 2014: desde o atentado colombiano (talvez encomendado pelos argentinos) contra Neymar até ao desfecho “trágico”(1-7).
Enfim, paixão. Com a vantagem de o prazer do jogo (combate) e o desejo de vitória serem sentimentos tão pouco nobres quanto partilháveis por toda a espécie humana.
Aqui chegados, a evocação do Carnaval já deve parecer óbvia, mas importa esclarecer que a principal referência, apesar das semelhanças formais, não é o Carnaval do Rio (que de resto contrata em Parintins muitos dos seus melhores colaboradores cenográficos), um espectáculo relativamente convencional.
Invoco o Carnaval de rua, tomando como exemplo o Carnaval de Salvador, que permite uma participação intensa e abrangente e uma interpenetração fluida entre performers, participantes e espectadores. Carlinhos Brown é famoso (entre outras coisas, por exemplo, o cabelo) por “puxar” o “trio” no chão, no “arrastão” da manhã de Quarta-feira de Cinzas.
Há diferenças entre ir em cima do “trio eléctrico”, assistir “de” camarote, ir “dentro” da “corda” (que delimita o espaço de quem pagou para estar junto ao “trio”) ou ir na “pipoca” (fora da “corda”), mas não há como excluir quem quer que seja. Não pode ser proibido estar na rua. As ruas ficam fisicamente cheias.
Enfim, paixão. Com a vantagem de toda a população estar, por definição, convidada e convocada.
Há outra nuance.
No Carnaval do Rio existe um júri que, este ano (obra-prima de ironia e verdadeiro hino à corrupção), resolveu distinguir uma escola que homenageou (a troco de dinheiro, segundo alguns rumores) a Guiné Equatorial, prestigiado bastião da “lusofonia”.
Em Salvador não há um júri mas um método difuso de sondagem que faz emergir, como que por consenso, a música do Carnaval. Não se sabe bem porquê mas toda a gente vai percebendo, ao longo do Carnaval, qual vai ser a música do Carnaval, que acaba por ir sendo cantada por múltiplos intérpretes. Este ano, Márcio Victor (líder da banda Psirico) ganhou com Tem Xenhenhem. Já tinha ganho o ano passado com o inesquecível Lepo Lepo e, em 2008, com Mulher Brasileira (Toda Boa). O ritmo é mais ou menos sempre o mesmo (o melhor do “Pagode”), tal como o assunto (de inspiração, por assim dizer, “neo-pós-feminista” ou “neo-queer”), mas também não há assim muitos assuntos susceptíveis de interessar (quase) todas as pessoas.
Mais aliciante, do ponto de vista sociológico, o segundo lugar alcançado este ano por Igor Kannario, que só à última hora foi autorizado a desfilar, devido à sua alegada relação com pessoas envolvidas em práticas ilegais (e que não são nem políticos nem líderes de grandes empresas ). Os refrões dos seus maiores sucessos são lapidares : “Eu não sou de baixar a cabeça para ninguém” e “Tudo nosso nada deles”, que até o prefeito ACM Neto acabou por ter de trautear em cima de um “trio” em directo para a televisão.
Igor Kannario, o “Príncipe do Gueto”, foi seguido, sem “corda”, pela maior multidão do Carnaval de Salvador 2015: a maioria, como não poderia deixar de ser, veio do Bairro, como não poderia deixar de ser, da Liberdade.
“É nois !”.
Ensaísta e crítico
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