Ainda não há um número de telefone na Europa

O Tratado de Lisboa criou dois novos cargos, a somar à Comissão Europeia: o presidente do Conselho Europeu e o alto-representante da Política Externa e de Segurança. Cinco anos depois, o risco de fragilizar o presidente da Comissão confirmou-se. Com alguma ajuda de Barroso. Já há atendedor de chamadas, mas as opções ainda são várias.

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Durão Barroso lidou mal com a emergência de um concorrente, Herman van Rompuy AFP

Tudo partiu de um mal-entendido. A União Europeia (UE), dizia-se em 2009, iria finalmente ter os meios das suas ambições com um novo tratado – baptizado de Lisboa – que a tornaria mais transparente, eficaz, democrática e, sobretudo, mais coerente, visível e interveniente face ao resto do mundo.

Dois novos cargos criados no tratado iriam, supostamente, protagonizar pelo menos em parte esta mudança: um presidente permanente do Conselho Europeu (as cimeiras de líderes da UE) – uma espécie de “Senhor Europa” em representação dos então 27, actualmente 28, Estados-membros – e um alto- representante para a política externa – de facto, um “ministro” europeu dos Negócios Estrangeiros encarregue de falar em nome da UE com o resto do mundo.

Paradoxalmente, nem o espírito, nem a letra do novo tratado europeu permitiam uma leitura tão ambiciosa dos dois cargos. A prática encarregou-se de o confirmar.

A ideia de criar um presidente permanente do Conselho Europeu, para acabar com o sistema das presidências semestrais assumidas de forma rotativa por todos os países, não parecia à partida tão absurda quanto isso.

Os seus defensores clamavam que esta mudança da equipa nos comandos todos os seis meses perturbava a continuidade do trabalho europeu e punha em causa a sua coerência. Este argumento é facilmente desmontado quando se sabe que as agendas de cada presidência resultavam de compromissos anteriores, o que não punha em causa a continuidade do trabalho, e que as decisões europeias são preparadas ao mínimo detalhe por centenas de comités de técnicos especializados onde se sentam outros tantos representantes dos governos nacionais, cada vez mais em co-decisão com o Parlamento Europeu. O facto de o “presidente da UE” mudar de cara de seis em seis meses era sobretudo motivo de perplexidade para o resto do mundo.

Com base, em particular, no argumento da necessidade de reforçar a visibilidade externa da UE, o Reino Unido, apoiado pela França, conseguiu convencer os parceiros a avançar com a criação do novo cargo.

A verdadeira motivação dos britânicos, de que nunca fizeram segredo, era, porém, outra: fragilizar a Comissão Europeia, até então a instituição central do processo de decisão europeu, por ser a única com o poder de apresentar propostas legislativas e, sobretudo nos tempos áureos de Jacques Delors (1985-1995), fazer avançar o grande objectivo do Tratado de Roma de construção de uma União “cada vez mais estreita” entre os povos da Europa.

Do ponto de vista britânico, um novo presidente do Conselho Europeu imporia acima de tudo uma partilha do poder que estava até então concentrado nas mãos do presidente da Comissão Europeia, visto muitas vezes como “a cara” da Europa. Para esta partilha de poder, nada melhor, do ponto de vista britânico, do que pôr dois galos na mesma capoeira.

Mas não só: um presidente permanente provocaria inevitavelmente uma transferência progressiva do centro de poder da Comissão e das outras instituições “comunitárias” (Conselho de Ministros e PE) para o Conselho Europeu, órgão “intergovernamental” por definição, onde as decisões são tomadas por consenso (em vez da maioria qualificada das outras instituições) e onde são os maiores que dominam.

Foi precisamente por temerem esta “deriva” do método de decisão comunitário – representante do interesse comum – para um esquema mais intergovernamental onde os maiores predominam que Portugal e vários outros países de menor dimensão se bateram com unhas e dentes durante meses para evitar a criação da figura do presidente permanente do Conselho Europeu. Sem sucesso.

Cereja sobre o bolo, os ingleses decidiram que o primeiro titular do cargo haveria de ser o seu ex-primeiro-ministro Tony Blair, que consideravam o único europeu com notoriedade suficiente para se assumir como um “senhor Europa” capaz de fazer “parar o trânsito em Washington e Pequim”.

Esta pretensão nunca teve grandes adeptos, tanto mais que o perfil do presidente do Conselho Europeu previsto no tratado – essencialmente um super-diplomata hábil ao serviço dos governos – é o exacto oposto do estatuto de superestrela assumido por Blair. Segundo o tratado, o papel deste novo cargo cinge-se no essencial à fixação da agenda das cimeiras de líderes, à condução dos debates e à procura de consensos tão alargados quanto possível de modo a que a totalidade dos 28 chefes de Estado ou de governo se revejam de alguma forma no resultado final. É, em suma, sobretudo um trabalho de formiga, na sombra, em que se espera do titular uma grande capacidade de escuta e compreensão das sensibilidades nacionais, criatividade e imaginação para tentar acomodar os interesses de todos.

Em nenhuma circunstância o perfil de Blair se adaptaria a este caderno de encargos. Além de detestar perder tempo com detalhes – de tal forma que as duas presidências semestrais rotativas que assumiu enquanto primeiro-ministro foram um desastre –, Blair dificilmente conseguiria resistir ao apelo do estrelato ou à tentação de impor os seus pontos de vista, que era o que os governos da UE queriam a todo o custo, precisamente, evitar.

A escolha do até então praticamente desconhecido e relativamente apagado ex-primeiro-ministro belga Herman van Rompuy para o cargo em 2009 (renovado em 2012), que foi na altura ridicularizada por uma parte da imprensa – sobretudo britânica –, acabou por se revelar acertada.

Discreto, ponderado, reflectido e sem qualquer ambição de estrelato, Van Rompuy conseguiu, sobretudo durante a crise do euro, aguentar uma sucessão alucinante de cimeiras europeias, cada uma em pior ambiente de gravidade e pânico do que a anterior, e arbitrar a invenção, à pressa, de uma série de soluções para evitar a implosão da moeda única. Mesmo se não se livra das acusações de seguir sistematicamente a vontade da Alemanha – o que nenhum presidente do Conselho Europeu teria podido evitar, porque Berlim se impôs, de facto, como o elefante na sala –, o belga fez todos os possíveis para traçar pontes e caminhos entre as diferentes posições em jogo.

O objectivo britânico de fragilizar a Comissão Europeia foi, por outro lado, plenamente conseguido, não tanto por causa da personalidade de Van Rompuy, mas sobretudo porque Durão Barroso lidou mal com a emergência de um concorrente.

Em Berlim, aliás, altos responsáveis alemães queixavam-se não há muito tempo de que o ainda presidente da Comissão Europeia passava grande parte do seu tempo em guerras de poder com Van Rompuy, cujas instalações estão separadas das suas por 50 metros e uma avenida.

Alguns diplomatas americanos ainda transpiram quando contam como decorreu um célebre almoço do seu secretário de Estado, John Kerry, no edifício da Comissão Europeia e as longas negociações impostas pela equipa de Barroso para evitar, primeiro, a inclusão de Van Rompuy (Kerry só tinha tempo para um almoço, não dois) e, segundo, para não deixar espaço ao belga, monopolizando a conversa.

Um dos grandes problemas do Tratado de Lisboa foi, aliás, precisamente o facto de não ter facilitado a representação externa da UE, que continua a ser assegurada pelo presidente da Comissão, o presidente do Conselho Europeu e a alta-representante para a política externa, Catherine Ashton. A perplexidade dos interlocutores externos será decerto a mesma que antes do Tratado de Lisboa.

A escolha de Ashton foi uma espécie de recompensa para a recusa de Blair. Sem qualquer experiência de política externa, a baronesa “caiu” no cargo por ser britânica, socialista e mulher, o que permitiu um certo reequilíbrio político e de género nos cargos dirigentes.

A sua inexperiência valeu-lhe uma entrada em cena lenta e muito criticada, algumas gaffes e ausências difíceis de justificar em situações particularmente importantes.

Mesmo assim, Ashton conseguiu pôr de pé aquela que era porventura a sua principal missão, o Serviço Europeu de Acção Externa, que faz as vezes de Ministério dos Negócios Estrangeiros, com representações diplomáticas oficiais em mais de 100 países.

Se, em matéria de política externa, a britânica conseguiu em quatro anos alguns sucessos, como o acordo antinuclear com o Irão, ou a aproximação entre a Sérvia e o Kosovo, já na outra vertente do pelouro – a segurança e a defesa – o balanço do seu mandato é próximo de zero.

Embora a baronesa seja em parte responsável por esta inacção devido à sua proximidade considerada excessiva do Reino Unido (que resiste a qualquer ideia de abdicar da sua própria política em favor de uma abordagem comum europeia), o grande problema que o Tratado de Lisboa não conseguiu resolver é que a UE não dispõe de uma visão comum do seu interesse estratégico no mundo.

A crise da Ucrânia foi um revelador cruel desta dificuldade, com países a defender o reforço das sanções contra a Rússia, enquanto outros resistem, temendo perder o acesso ao gás russo. A verdade é que, não sendo a UE uma entidade federal, cada país mantém as suas prioridades, zonas de interesse privilegiado e reflexões estratégicas próprias. Um dilema que nenhum tratado conseguirá, por si só, resolver.

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