O Brasil engarrafado

1. Vai para um ano que muitos brasileiros saíram à rua contra o aumento dos ônibus, levantando toda a poeira que está no ar. Mas o lobby das empresas de ônibus continua poderoso, como se vê no Rio de Janeiro, onde a tarifa aumentou mesmo, apesar das manifestações. Agora pago 3 reais em vez de 2,75 para correr risco de vida duas ou três vezes por semana, porque sou uma privilegiada. Milhões de cariocas fazem isso não só diariamente, como multiplicando o risco por vários ônibus, somados a trens e metrô. O governo estadual tinha dito há dias que a tarifa de trens e metrô ia ficar congelada, mas estamos no Rio de Janeiro, é como quem diz: passa lá em casa. Acabo de ler que, sim, trens e metrô também vão aumentar em breve. Eu gostava que a FIFA patrocinasse esse desporto radical que é andar de trem ou ônibus no Rio de Janeiro. Começávamos por enfiar num trem da Zona Norte o cavalheiro cujo nome agora não me ocorre, Jérôme qualquer coisa, aquele que disse que é mais fácil organizar uma Copa do Mundo num país que não tenha a mania da democracia. Ou, vá lá, num ônibus da vasta Zona Oeste, onde, de facto, a democracia não tem tantas manias. 

2. Risco de vida não é estilo, é risco de vida. Pago os 3 reais e, se entretanto tiver sobrevivido ao arranque do motorista, tento controlar o início de ataque de pânico que sei que se vai seguir, sobretudo se o ônibus for a subir a rua das Laranjeiras para entrar loucamente na curva que dá acesso ao Túnel Rebouças, precipitando-nos a todos para a morte. Os meus primeiros tempos no trânsito carioca foram como pendura de moto, e não há como ser pendura de moto, e não concluir, sem grande debate ideológico, que os ônibus cariocas são uma organização terrorista. O Brasil, ou a direita no Brasil, ou a ex-esquerda no Brasil, discute neste momento a associação entre manifestantes e terroristas. Mas que é isso comparado com a eficácia mortal de um motorista de ônibus quando se apanha numa recta ou em qualquer curva mais insinuante? Acabo de ler uma breve no Globo dizendo que na Praça Seca (Zona Oeste, Zona Oeste) um ônibus descontrolado subiu a calçada e entrou por uma loja, ferindo cinco (já se fosse na Louis Vuitton de Ipanema dava capa). Outra breve, mais espantosa ainda, conta que ontem de manhã, na Avenida Brasil, dois ônibus chocaram, um dos motoristas saiu para discutir com o outro, e o outro resolveu atropelá-lo. O corpo foi arrastado por 500 metros. O homem morreu.

3. Calor ruim, trânsito ruim, salário ruim, patrão ruim, político ruim, motorista ruim. Vidas ruins são bolso de traficante, de milícia, de polícia corrupta, de máfia empresarial.

4. Entretanto, o metrô é uma amostra de metrô, ciclovias são amostras de ciclovias. Os estacionamentos dos prédios da Zona Sul estão cheios de modelos familiares, masculinos, femininos, infantis. O marketing do banco Itaú tem bicletários pela cidade, com os cidadãos a pedalarem a propaganda de graça. Mas tudo isso é sobretudo lazer, fim de tarde, fim-de-semana. A não ser que se seja entregador de pizza, de garrafão de água, de lavandaria. Aí, a bicicleta é vagabunda e neguinho vai de havaiana, tentando não ser trucidado por um ônibus.

Foto
Rui Gaudêncio

5. A coligação de esquerda-direita-ruralistas-evangélicos-e-etc. no poder continua a incentivar o cidadão brasileiro ao consumo. Lula foi um boom para os carros nas cidades do Brasil que por sua vez fizeram boom. O filho do jagunço do grande sertão está neste momento engarrafado em alguma cidade brasileira. Os trens suburbanos são umas carcaças e o metrô, quando há, não chega para nada. As imagens no metrô de São Paulo à hora de ponta antecipam o apocalipse, uma massa comprimida entre as paredes e a entrada das carruagens, filas gigantescas cá fora, até à rua.

6. Estive há pouco no Recife, capital de Pernambuco. O governador do estado, Eduardo Campos, é o homem que quer rivalizar com Dilma Rousseff nas eleições presidenciais de Outubro. Aliou-se a Marina Silva, a ecologista evangélica que nas eleições de 2010 se tornou um fenómeno ao convencer 20 milhões de brasileiros a votarem nela na primeira volta. Recife é, para todos os efeitos, um dos epicentros pujantes do Brasil 2014. Aterrei lá num sábado, dia aparentemente tranquilo no trânsito. No domingo andei horas a pé pelo Recife Antigo, junto ao estuário do rio Capibaribe: parecia a invasão das bicicletas de Marte. Milhares de pessoas com capacetes, luvas, joalheiras, roupas fosforescentes. Todas as transversais ocupadas por cidadãos devidamente equipados, alguns à conversa nas esquinas, cada um montado na respectiva bicicleta. Uma loja cheia de bicicletas retrô, trendy, tipo butique da bicicleta, onde os cidadãos disputavam os modelos. O Brasil é aquele país onde a primeira loja Apple da América Latina se inaugurou esta semana (na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, claro) e gerou um engarrafamento febril, apesar de os preços serem os mais caros do mundo. A febre da bicicleta no Recife estava assim. Depois foi segunda-feira e eu conheci o trânsito Olinda-Recife. Quais bicicletas, era respirar fundo e contar com uma hora para aqui, uma hora para ali. A explicação é vertical, está no céu: torres, torres, torres. As torres têm apartamentos com direito a um, dois, três lugares de garagem. E esses carros estão na rua, em todas as ruas do Recife, em todas as cidades do Brasil, porque são um símbolo de tudo o que cidadão conquistou. Transporte público é para neguinho que ainda não chegou lá. E quem é pobre mesmo anda a pé.

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