Como vai a europa enfrentar um novo 11 de Setembro?

O ataque ao jornal Charlie Hebdo surge num momento de crise das políticas de imigração.

Foto

O massacre dos jornalistas do Charlie Hebdo provocou em França duas linhas de reacção imediatas. Horas depois do atentado, o filósofo Abdennour Bidar, francês e muçulmano, publicou um texto no Le Monde: “É o nosso 11 de Setembro. Há na vida de um povo horas de desafio. Horas em que a ferida que o ódio nos inflige é tão horrorosa que parece querer ser mortal. Horas de horror em que esta ferida faz tão mal, em que o horror é tão difícil de suportar, que sentimos a perigosa besta do medo prestes a despertar.”

A mensagem de Bidar resume-se em poucas linhas: “A vertigem e a náusea que todos experimentamos não nos devem fazer bascular no caos com aqueles que já lá estão, estes bárbaros que para lá nos quereriam arrastar. Sobretudo não lhes devemos dar esse prazer, deixar que a besta imunda que os domina nos arraste por sua vez. (...) A eterna tentação para o ser humano da lei de talião, do ódio em resposta ao ódio.”

“O futuro joga-se neste ponto: ceder à loucura, ao pânico, à tentação do ódio, [joga] a favor da extrema-direita que vai esperar tranquilamente que este atentado lhe permita fazer as colheitas eleitorais do pavor.” O que o preocupa é o agravamento da ruptura entre a Europa e as suas comunidades muçulmanas.

Foto
Homenagem às vítimas em Trafalgar Square, em Londres Suzanne Plunkett/REuters

Também horas depois, escrevia no Slate.fr um antigo director do Le Monde, Jean-Marie Colombani: “A França está sob choque após o mortífero atentado contra o Charlie Hebdo. A França enfrenta talvez a sua maior provação desde o fim da Guerra da Argélia. As palavras são impotentes para exprimir o horror que nos toma, a indignação e a cólera. (...) Esta provação mostra-nos nas piores condições que o alvo dos terroristas é exactamente a liberdade. E a sua primeira muralha, que é sempre a liberdade de imprensa. (...) Os jornalistas do Charlie Hebdo são os heróis mártires do nosso tempo, das nossas liberdades.”

Na mesma linha, cinco jornais europeus (Le Monde, The Guardian, Süddeutsche Zeitung, La Stampa, Gazeta Wyborcza y El País) redigiram um editorial comum. “Já nos últimos meses, a liberdade de pensar e informar estava no ponto de mira, com a decapitação de outros jornalistas, americanos, europeus ou de países árabes, sequestrados e assassinados às mão da organização Estado Islâmico. O terrorismo, seja qual for a sua ideologia, recusa a busca da verdade e não aceita a independência de espírito. O terrorismo islâmico ainda mais.”

Porquê?

Estas citações, de textos escritos a quente, ajudam a apreender a lógica do atentado e o seu impacto — um novo “11 de Setembro” — não apenas em França mas na Europa. A sua potência deriva da combinação entre um mortífero ataque à liberdade de expressão — contra um jornal célebre — e o objectivo de abrir uma “guerra civil” na Europa — entre muçulmanos e não muçulmanos. Para os jihadistas, impedir a integração dos muçulmanos nas sociedades europeias é uma prioridade estratégica. Incutir medo na Europa — e estimular a islamofobia — é-lhes favorável. O ataque ao Charlie Hebdo é um instrumento simbólico dessa estratégia. Foi um alvo cuidadosamente escolhido para ter ressonância mundial e uma aparência de vingança religiosa.

Há uma terceira dimensão, a da demonstração de força dos jihadismo. “Este ataque foi cometido para provocar uma onda de choque na cena internacional”, afirmou à AFP Lina Khatib, directora do centro Carnegie para o Médio Oriente. “A execução espectacular visou demonstrar a influência dos círculos jihadistas na Europa.” Por outro lado, trata-se de enviar uma mensagem aos Estados que fazem parte da coligação internacional [contra o Estado Islâmico], mostrando que são doravante vulneráveis.” A encenação militar, com kalashnikov, e o grito “Alá é grande” encerram a mensagem de guerra santa. As paisagens devastadas da Síria ou do Iraque servem de pano de fundo.

Independentemente da organização que promoveu ou inspirou o atentado (escrevo na quinta-feira e por isso ignoro), todos os grupos jihadistas dele tentarão tirar proveito. Poderá ser um catalisador para atrair novos simpatizantes à causa jihadista, declarou o analista americano Max Abrahms. “Quando os grupos terroristas dão a impressão de estarem a vencer, é-lhes mais fácil fazer recrutamentos.”

A islamofobia

O contexto do atentado é péssimo. A Europa está em crise de modelos para a imigração. O multiculturalismo experimentado em vários países deixa de funcionar quando os imigrantes, designadamente os muçulmanos, atingem um nível elevado. Em França, a “integração republicana” há muito que está en panne. Os movimentos xenófobos sempre existiram mas estão hoje em rápida expansão, designadamente em relação aos muçulmanos — por isso se fala de islamofobia. Esta cresce, sob vestes diferentes, no Norte e no Sul da Europa.

Na França, a “questão islâmica” é, ao lado do euro, uma das bandeiras da Frente Nacional de Marine Le Pen. A islamofobia tornou-se a forma “respeitável” de reciclar a xenofobia e, inclusive, o racismo. Em nome da legalidade republicana, Le Pen comparou as multidões muçulmanas na rua em oração a “ocupantes” — uma alusão aos nazis. A moda começa a ganhar alguns meios intelectuais. Na Itália, o panorama é similar. A nova direita em ascensão, a Liga Norte, de Matteo Salvini, cresce nas sondagens explorando os mesmos temas da FN: antieuro e anti-islão.

Na Alemanha, até agora poupada pelo populismo, surgiu um fenómeno novo: os Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente (Pegida). Desde Novembro, alguns milhares de pessoas manifestam-se contra a “islamização” todas as segundas-feiras. É um fantasma. Nos estados do Leste alemão onde o Pegida nasceu, há apenas 2,1% de estrangeiros e, destes, apenas 0,1% são muçulmanos.

“Podem distinguir-se dois factores principais na ascensão dos populismos”, escreve Jean-Yves Camus, especialista na extrema-direita. “Primeiro há um aspecto cultural: a questão identitária tornou-se importante na Europa por causa dos que se inquietam com o alargamento infinito [da UE] e com a imigração. O islão, a ausência de fronteiras e a sociedade multicultural são fenómenos que contribuem para um sentimento de insegurança cultural.”

Foto
A França proibiu o uso do véu em público. gonzalo fuentes/reuters

A Holanda e alguns países escandinavos estimularam o multiculturalismo pouco se importando que parte dos seus cidadãos ou imigrantes islâmicos não cumprissem leis básicas dos Estados em que vivem. Era em nome da tolerância, era uma forma doce de segregação.

Hoje descobrem que os imigrantes, sobretudos os muçulmanos, resistem à integração e alimentam um crescente ressentimento. É um problema que toca a paz civil na Europa. Os fundamentalistas islâmicos procuram submeter as comunidades muçulmanas, prosseguir a doutrinação ideológica e impedir a sua integração na sociedade laica. Imãs vindos do Médio Oriente pregam a prevalência da sharia (lei islâmica) sobre a lei civil e o Estado de direito. Ao fundamentalismo, seguiu-se um surto de fascínio pelo jihadismo, sobretudo entre os jovens.

A Europa está confrontada com escolhas de difícil controlo. O envelhecimento da população torna a imigração uma questão de sobrevivência económica. O terrorismo islâmico levanta uma grave questão de segurança. E o modelo de integração dos imigrantes — que varia de país para país segundo as suas tradições — determinará o futuro do seu modelo político e civilizacional. E, o pior, é que raramente funciona.

Nestes termos, é fácil entender a estratégia jiahdista de cortar as pontes entre as comunidades muçulmanas e o mundo não islâmico.

O equívoco dos cartoons

O atentado contra o Charlie Hebdo obriga a levantar os problema dos “cartoons blasfemos”. A questão foi, aliás, abordada na quarta-feira por Tony Barber, chefe do serviço europeu do Financial Times, advertindo contra os riscos de estender certo tipo de sátira às religiões.

Em 2005, o diário conservador dinamarquês Jyllands Posten começou a publicar, em nome da liberdade de expressão, caricaturas de Maomé. Uma delas colocava uma bomba no turbante do profeta. Com intuitos didácticos, o jornal queria testar a resistência dos muçulmanos dinamarqueses à “blasfémia”. Semeou uma tempestade “global”. Foram incendiadas embaixadas.

Uma parte dos editorialistas europeus defendeu o “direito à blasfémia” como parte integrante da liberdade de expressão, que só pode ter limites na lei e nos tribunais. A Europa não pode obedecer aos interditos islâmicos, entre eles o de representar o profeta ou Alá.

A questão não é jurídica. Um jornal jordano comentou: “É difícil acreditar que os directores de um jornal europeu não tenham sofisticação intelectual e cultura histórica suficientes para perceber que desenhar o profeta como terrorista constitui um insulto maior.” Joseph Sitruk, grande rabino de França, afirmou que o direito à sátira “acaba no ponto em que se torna provocação ou desprezo pelo outro”. Que teria acontecido se um cartoon mostrasse, por exemplo, Moisés a espancar um palestiniano? Seria liminarmente condenado por anti-semitismo.

As caricaturas têm três níveis de respostas. É legítimo representar a imagem de Maomé porque as leis islâmicas não têm curso nos Estados europeus. Satirizar a religião é algo a que eles se têm de habituar, embora se trate de terreno perigoso, como tudo o que toca o sagrado. Ao contrário, a representação de Maomé como bombista significa colar a imagem de terrorista às comunidades islâmicas, criminalizá-las em bloco: é racismo. Ofende os padrões europeus de civilização. Pela manifesta vontade de humilhar os muçulmanos, alguns dos desenhos lembram as caricaturas anti-semitas dos tristes anos 1930. É algo que a “sensível” imprensa israelita então sublinhou.

O que o inocente jornal dinamarquês praticou foi um “acto claramente incendiário”, escreveu um jornalista do Guardian. A maioria dos editorialistas britânicos e americanos frisaram que a liberdade de imprensa é intocável mas deve ser exercida com limites e sentido de responsabilidade. O Washington Post criticou virulentamente os jornais europeus que reproduziram as caricaturas, “não por amor à liberdade de expressão”, que não está ameaçada na Europa, mas por “insensibilidade ou hostilidade” aos outros.

O analista argelino Malek Chebel denunciou os cartoons como “islamófobos” e dando armas aos islamistas radicais. Denunciou a hipocrisia de muitos árabes. Hassan Nasrullah, chefe do Hezbollah libanês, foi um dos mais virulentos denunciadores. Mas a sua televisão, Al-Manar, representava os judeus com focinho de porco.

O Charlie Hebdo foi um dos jornais que reproduziram as caricaturas e não ficou por aí, explorando o filão islâmico. É um semanário satírico, uma instituição da imprensa francesa, que caricatura todos os políticos e todas as religiões. O crime de quarta-feira não deve impedir uma discussão aberta sobre as caricaturas.

O debate não põe em causa a homenagem: hoje “somos Charlie”. O jornal foi seleccionado como alvo a pretexto das caricaturas. Mas foi atacado enquanto símbolo do Ocidente e dos seus valores, numa estratégia mais larga para “incendiar” a Europa.

E o mundo muçulmano?

Retomamos um outro texto de Abdennour Bidar, publicado em Outubro: “Carta aberta ao mundo muçulmano”. Os dirigentes muçulmanos condenaram o atentado de Paris. Não basta. A carta pode ser lida hoje como uma antecipada interpelação aos muçulmanos pelo crime de quarta-feira, praticado em nome de uma “religião armada”.

“Vejo-te parir um monstro que se pretende chamar Estado Islâmico e a que outros preferem dar um nome de domónio: DAESH. De facto, que dizes tu perante este monstro? ‘Não sou eu.’ ‘Não é o islão.’ Tu recusas os crimes do monstro cometidos em teu nome. Insurges-te contra o facto de o monstro usurpar a tua identidade, e tens razão em o fazer. É indispensável que, perante o mundo proclames, alto e forte, que o islão denuncia a barbárie. Mas tudo isto é insuficiente. Porque tu te refugias num reflexo de autodefesa sem assumir a responsabilidade da autocrítica. E acusas em vez de assumir a tua própria responsabilidade: ‘Vós ocidentais, vós e todos os inimigos do islão, deixai de nos associar ao monstro! O terrorismo não é o islão, o verdadeiro islão, o bom islão que não quer dizer guerra mas paz.”

Foto
O atentado surge numa altura em que a Europa está em crise de modelos para a imigração Olivia Harris/Reuters

Fica por resolver a grande questão? “Por que é que o monstro roubou a tua face? Por que é que o monstro ignóbil escolheu a tua cara e não outra?” É o problema das raízes do mal. “Tu escolheste considerar que Maomé era profeta e rei. Tu escolheste definir o islão como religião política, social e moral, devendo reinar como um tirano, tanto sobre o Estado como sobre a vida civil, e também na rua, em casa e no próprio interior de cada consciência. Tu escolheste crer e impor que o islão queira dizer submissão, quando o próprio Corão proclama que ‘não há constrangimento na religião’.” Tudo começa na liberdade.

É tudo culpa do Ocidente? “Desde o século XVIII, é tempo de o confessar, tu tens sido incapaz de responder aos desafios do Ocidente. Quanto tempo vais perder ainda, querido mundo muçulmano, com esta acusação estúpida, em que nem sequer acreditas, e por trás da qual te escondes para continuar a mentir a ti mesmo?”

Este texto não tem conclusão. Tanto a Europa como o mundo muçulmano estão numa encruzilhada. A França está perante um combate sem concessões. E toda a Europa. Há consenso em torno de uma ideia: ceder ao medo, sacrificar valores e alienar as comunidades muçulmanas seria a abertura de nova tragédia.

Sugerir correcção
Ler 6 comentários