A presidência delico-doce

Será que o Presidente dos afectos é capaz de ser implacável?

Nestes primeiros seis meses, o que sobressai são os afectos e a proximidade, o trilho constante da dessacralização do poder, a exposição da personagem presidencial em todo o seu esplendor e aparentemente sem filtros, pregando a conciliação em forma de pactos e distribuindo urbi et orbi a alegria genuína de quem se sente realmente confortável no papel para o qual foi eleito pelos portugueses.

Hoje, Marcelo Rebelo de Sousa já não se senta na sala de estar dos portugueses apenas uma vez por semana, para comentar a actualidade política com o à-vontade de quem faz parte da família. Agora, Marcelo entra-nos a toda a hora pela casa dentro com o seu manancial de beijos e abraços, querendo convencer-nos de que somos os maiores, incensando heróis e tentando insuflar-nos a sua inesgotável energia através dos ecrãs, como se isso tudo fosse suficiente para afastar muitos dos fantasmas que nos continuam a assombrar. É evidente que isso não basta, mas tem sido importante para distender o clima político e injectar alguma esperança nas vidas de tantos portugueses afectados pelos males de uma crise que está longe de se resolver. Esta postura tem-lhe valido apoios crescentes, sobretudo à esquerda, obviamente aquietada por um inquilino de Belém que tem mantido com o Governo um regime de apaixonada coabitação, tão perfeita que nem dois vetos políticos conseguiram beliscar — casos da gestação de substituição e a estatização dos transportes do Porto. Também não se têm registado quaisquer efeitos colaterais com as advertências sobre a evolução da economia ou das metas orçamentais, ou quando avisou que poderá recorrer ao Tribunal Constitucional, caso o restabelecimento das 35 horas na Função Pública ponha em causa o Orçamento de 2016.

Curiosamente, e para já, os dois principais protagonistas têm conseguido tirar bons dividendos desta coabitação. A popularidade de Marcelo Rebelo de Sousa tem subido em flecha, enquanto António Costa vê o PS distanciar-se do seu principal rival, o PSD de Passos Coelho. Esta evidência tem alimentado algumas bolsas de indisfarçado rancor à direita, que explicam a convivência pacífica entre Governo e Presidente com a alegada intenção deste em defenestrar Passos do PSD, abrindo caminho a uma liderança mais aberta a pactos de regime. Talvez fosse mais produtivo para a direita, sobretudo para o PSD, tentar perceber porque se deixou encurralar num gueto de onde não consegue sair, mas esta tese, na sua aura conspirativa, não deixa de ter um fundo de verdade. Atente-se como Passos levou ao limite a sua resistência à candidatura de Marcelo e como este tratou de afastar higienicamente o líder do PSD da sua corrida eleitoral, prevenindo-a de contaminações inconvenientes pelo passado recente. Seja como for, para o Presidente, Passos só é importante por ser uma peça decisiva no bloqueio do sistema e porque a continuação desse bloqueio compromete os objectivos do seu mandato.

Nada vai mudar a natureza delico-doce da presidência Marcelo, mas só no fim se saberá até onde ele é capaz de ir para derrubar obstáculos.   

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