Procuradora-geral “desagradada” com divulgação de vídeos de interrogatórios a Sócrates

“O Ministério Público fica sempre desagradado quando vê factos que constituem a prática de um crime”, declarou aos jornalistas Joana Marques Vidal, à margem de um seminário sobre maus tratos de crianças em Leiria.

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PAULO NOVAIS/LUSA

A procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, disse nesta quarta-feira ter ficado desagradada com a divulgação na televisão de vídeos dos interrogatórios da Operação Marquês, no âmbito do qual o Ministério Público acusou, entre outros, o ex-primeiro-ministro José Sócrates.

“O Ministério Público e a procuradora-geral ficam sempre desagradados quando vêem factos que constituem a prática de um crime”, declarou aos jornalistas, à margem de um seminário sobre maus tratos de crianças em Leiria,

A SIC e a CMTV divulgaram vídeos de interrogatórios no âmbito do processo Operação Marquês, tendo na terça-feira o Ministério Público (MP) anunciado a abertura de um inquérito para investigar esta situação.

“Embora o processo em causa já não se encontre em segredo de justiça, a divulgação destes registos está proibida, nos termos do art.º 88.º n.º 2 do Código de Processo Penal, incorrendo, quem assim proceder, num crime de desobediência (artigo 348.º do Código Penal)”, refere o MP numa resposta à Lusa.

Questionada sobre o que está a falhar quando são recorrentes as violações do segredo de justiça e a divulgação de peças processuais, Joana Marques Vidal declarou que todos, enquanto cidadãos, magistrados, jornalistas, elementos titulares de cargos públicos e políticos, advogados, membros de órgãos de polícia criminal, têm “obrigação de cumprir a lei”.

“Esta questão de violação da lei, quer relativamente à violação do segredo de justiça, quer neste caso a uma violação que leva a um crime de desobediência, é uma responsabilidade de todos nós e isso é que eu penso que é necessário nós interiorizarmos”, continuou, sublinhando que esta é uma questão “de toda a sociedade, principalmente dos responsáveis, dos intervenientes na área”, e não apenas da responsabilidade do Ministério Público.

A procuradora-geral da República insistiu que “isto é necessário que seja interiorizado por todos” e frisou que esta não é apenas uma questão criminal, mas também “ética e deontológica de todos os profissionais”.

À pergunta sobre eventuais novas medidas nesta matéria, Joana Marques Vidal voltou a defender uma reflexão. “Nós temos um modelo de reacção penal que está previsto na lei relativamente à questão da violação do segredo de justiça e respectiva sanção. Há outros países que têm outros modelos. Isto tem de ser um debate que tem de ser efectuado por todos para realmente depois haver uma opção. A opção político-institucional é feita pelos representantes do povo na Assembleia da República (...). O que eu apelo é que haja uma reflexão séria, serena, sobre os modelos existentes nos outros países e sobre aquilo que nós em Portugal pretendemos relativamente a esta questão”, acrescentou.

"Lamentável e deplorável"

Também o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), Manuel Ramos Soares, considerou esta quarta-feira "lamentável e deplorável" a divulgação na televisão de vídeos dos interrogatórios da Operação Marquês.

Manuel Ramos Soares defende que o caso da divulgação das imagens deve ser investigado e que deve haver punição se houver indícios de crime. Por outro lado, o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses considera que as imagens não demonstram nem a culpabilidade do arguido nem a sua inocência, classificando o caso como "um julgamento mediático ao lado de um processo", desvirtuando o que é a resposta processual.

Ordem dos advogados também critica

Também a Ordem dos Advogados (OA) criticou nesta quarta-feira a divulgação televisiva de peças processuais do caso Operação Marquês e do inquérito à queda do BES, em "violação da lei" processual penal e dos direitos e garantias constitucionalmente protegidos dos arguidos.

Em nota publicada no site da Ordem, o bastonário dos Advogados, Guilherme Figueiredo, e a Comissão de Direitos Humanos da OA repudiam o sucedido, dadas as "consequências nefastas que tem no equilíbrio dos interesses em presença", designadamente entre a liberdade de imprensa e os direitos fundamentais dos arguidos em processo penal.

"Concorde-se ou não com o regime legal estatuído no Código de Processo Penal no que concerne à divulgação pela comunicação social do conteúdo de actos processuais em processo criminal, o certo é que, em primeiro lugar, existindo lei em vigor, a mesma tem de ser cumprida. E uma violação de lei impõe, para reafirmação do império do Direito e para restabelecimento da paz social, que seja perseguida e sancionada", diz a OE.

Segundo a OE, mesmo que lei não existisse, a deontologia profissional do jornalista imporia sempre que a divulgação de informações relativas a processos criminais em curso não fosse filtrada unicamente por critérios, também eles jornalísticos, daquilo que se considera ser de interesse público.

"E é manifesto que a situação criada levou a que fossem tornadas do conhecimento público apenas `partes´ de interrogatórios e de `escutas´, ademais como suporte de prova da narrativa jornalística reclamada de investigação, não permitindo aos `julgadores populares' o acesso à integralidade das provas da mesma e igual natureza que possam infirmar ou mitigar as consequências que intelectualmente se retiram da escolha e decisão jornalística", diz a OE.

Tudo isto - prossegue a OE - "para já não referir, que manifestando as peças jornalísticas adesão a argumentos vertidos no texto da legitimamente conhecida acusação prolatada num dos processos contra os arguidos, tem a potencialidade de crispar a sociedade, violando um princípio base de paridade de armas".

Em seu entender, o procedimento utilizado não constitui apenas uma violação da lei processual penal vigente, pois "viola flagrantemente" os direitos constitucionalmente protegidos dos arguidos, contribuindo para "julgamentos populares totalmente desaconselháveis em sociedades democráticas saudáveis, ausentes de um contraditório capaz de formar uma opinião crítica".

O inquérito Operação Marquês culminou na acusação a 28 arguidos (18 pessoas e nove empresas) e está relacionado com a prática de quase duas centenas de crimes de natureza económico-financeira.

José Sócrates, que chegou a estar preso preventivamente durante dez meses e depois em prisão domiciliária, está acusado de três crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, 16 de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documentos e três de fraude fiscal qualificada.

Entre outros pontos, a acusação sustenta que Sócrates recebeu cerca de 34 milhões de euros, entre 2006 e 2015, a troco de favorecimentos a interesses do ex-banqueiro Ricardo Salgado no Grupo Espírito Santo (GES) e na PT, bem como por garantir a concessão de financiamento da Caixa Geral de Depósitos ao empreendimento Vale do Lobo, no Algarve, e por favorecer negócios do Grupo Lena.

Além de Sócrates, estão acusados o empresário Carlos Santos Silva, amigo de longa data e alegado testa-de-ferro do antigo líder do PS, o ex-presidente do BES Ricardo Salgado, os antigos administradores da PT Henrique Granadeiro e Zeinal Bava e o ex-ministro e antigo administrador da CGD Armando Vara, entre outros.

A acusação deduziu também um pedido de indemnização cível a favor do Estado de 58 milhões de euros a pagar por José Sócrates, Ricardo Salgado, Carlos Santos Silva, Armando Vara, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava e outros acusados.

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