O corporativismo e a orientação da DGS sobre o parto

A maioria dos partos de baixo risco já é efetuada por enfermeiros especialistas. Foi com enorme espanto que assistimos à despropositada reação da Ordem dos Médicos.

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Em 2021 foi finalmente transposta a Diretiva Europeia 2005/36/CE. É esse o enquadramento legal da recente orientação da DGS sobre cuidados de saúde durante o trabalho de parto.

Os critérios de baixo risco encontram-se bem definidos e o trabalho em equipa é, como sempre, incentivado. Na prática, nada mudará. No SNS, a maioria dos partos de baixo risco continuará a ser efetuada por enfermeiros especialistas em saúde materna e obstétrica (EESMO). A qualidade da sua formação é tão reconhecida que ganharam, nas urgências obstétricas, autonomia para iniciar processos de internamento e prescrição de análises. Em cada vez mais unidades dos cuidados de saúde primários, são responsáveis pela vigilância de grávidas de baixo risco.

A orientação da DGS formaliza uma prática estabelecida há décadas. Porém, a DGS emitiu apenas uma orientação e não uma norma. Ou seja, é uma recomendação e não uma “lei”. Este é o único aspeto em que a DGS pode ser criticada: poderia ter ido mais longe. Os enfermeiros especialistas já estão autorizados pela lei a prescrever todos os exames necessários, de forma a diagnosticar o mais precocemente possível uma eventual gravidez de risco. A mera orientação peca por defeito.

Foi, por isso, com enorme espanto que assistimos à despropositada reação da Ordem dos Médicos (OM) nos últimos dias. A OM começou por afirmar que não tinha sido consultada durante o processo de redação da orientação. Bastante inverosímil, se pensarmos que o grupo de trabalho contém cinco médicos indicados por esta Ordem profissional. Evoluiu, lamentavelmente, para um pedido de revogação do documento. Não é por acaso que Diogo Ayres Campos, diretor do Serviço de Obstetrícia do Centro Hospitalar Lisboa Norte e coordenador deste grupo de trabalho, afirma categoricamente: “A posição da Ordem dos Médicos é incompreensível.”

Este ataque ao direito à saúde atingiu níveis surreais com o texto de Gustavo Carona no PÚBLICO online, no passado dia 15. O intensivista insinua uma equiparação da prática dos enfermeiros especialistas em saúde materna a “pseudociência”, compara os indicadores de saúde materna obtidos por EESMO aos do Sudão do Sul (o país do mundo com os piores resultados em saúde nesta dimensão) e acusa a DGS de “querer retirar os médicos obstetras desta decisão”. No fim, se restassem dúvidas, afirma que a consequência desta orientação será um “retrocesso civilizacional que vai causar mortes”. No fundo, Gustavo Carona e a OM querem convencer-nos de que toda a Europa está errada, que errámos nas últimas décadas, que só por milagre é que Portugal não tem os indicadores do pior país do mundo em saúde materna. Ao prestar-se a este triste serviço, não ataca apenas os enfermeiros especialistas, ataca o direito das mulheres a aceder a cuidados de saúde de qualidade e de forma equitativa.

Uma comparação séria deve ser feita, e não é com o Sudão do Sul. Segundo a OMS, Portugal tem 16,1 médicos obstetras por cem mil habitantes, o que se compara com os 13,9 da Suécia. Por outro lado, temos apenas 6,9 enfermeiros especialistas por mil habitantes; na Suécia são o dobro: 12,6. Em Portugal, realiza-se o dobro das cesarianas. A taxa de mortalidade materna sueca é menos de metade da nossa. É fácil concluir que o aumento das competências dos enfermeiros especialistas nos aproxima da Suécia, e não do Sudão do Sul.

A saúde precisa de profissionais que trabalhem em equipa e partilhem responsabilidades. Estas atitudes minam a confiança interprofissional. O velho corporativismo pode valer alguns aplausos, mas é inimigo da saúde e felizmente há novas gerações de médicos que o rejeitam. Refletir sobre o que aumenta o acesso equitativo aos cuidados de saúde e trabalhar em conjunto para oferecer o melhor ao cidadão – esse deve ser dos principais propósitos das ordens profissionais da saúde.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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