A semente do fim da modernidade: a religião e a desgraça do literalismo

Não é o literalismo que permite chegar a uma religião centrada no amor, mas sim o liberalismo político e social. A religião como inclusão foi conseguida com a afirmação da modernidade.

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Como professor no campo da História das Religiões, as situações mais tensas que tive em sala de aula foram todas respeitantes à forma de encarar os Textos Sagrados, à sua literalidade na leitura, ou a possibilidade desses textos serem alvo de uma análise crítica.

Julgo que ganhei, ao longo dos anos, alguma capacidade de diálogo com certas posturas literalistas radicais, mas que não deixam de me espantar com aquilo que implicam em termos de conceção do conhecimento: como consequência das posturas mais radicais em termos de literalismo, são quase sempre leituras do mundo definidas pela exclusão, pela incapacidade de dialogar, pela afirmação de verdades inquestionáveis que se sobrepõem a tudo e a todos.

Não é exagerado afirmar que, com base na incapacidade de aplicar aos Textos Sagrados as chaves de leitura da modernidade, parte da população que segue os monoteísmos é incapaz de olhar para o outro e aceitá-lo como igual. Para parte do atual mundo religioso, especialmente para os movimentos mais dinâmicos dentro dos monoteísmos, a chamada Crítica Literária, que analisa a forma como foram construídos, redigidos os textos é totalmente herética, senão mesmo demoníaca, se aplicada aos Textos Sagrados.

Com a crescente adesão de muitos movimentos evangélicos a um literalismo radical, à doutrina da Inerrância Bíblica, desenvolvida especialmente nos EUA a partir de 1970, e segundo a qual a Bíblia está totalmente livre de contradições, não necessitando de qualquer outro texto para se autoexplicar, as pontes entre a ciência e esses grupos religiosos foram desaparecendo, lançando o lastro para uma gigantesca onda de negacionismos.

Quando um texto de natureza mítica, no que respeita factualidade dos episódios narrados, é transformado em verdade absoluta, toda a restante realidade é percecionada como errada e passível de ser destruída para que a verdadeira ordem e vontade do divino seja implementada. Uma sociedade que se reja pelo princípio da literalidade dos Textos Sagrados corre o risco de se transformar numa amálgama totalmente incapaz de qualquer sentido crítico.

Infelizmente, esse é o caminho mais comum nas tradições religiosas que alimentam uma forma de estar no mundo que é de constante luta. Sejam as igrejas neopentecostais, assim como algumas evangélicas, que pugnam por uma "limpeza" social e politica de tudo o que definem como aberrações antibíblicas, sejam algumas correntes islâmicas (sunitas ou xiitas) com uma ideia de guerra ao Ocidente e aos costumes liberais, seja o judaísmo ultraortodoxo que cimenta a justificação da posse da terra da Palestina num mandato do Antigo Testamento, todos eles colocam a sua interpretação de uns quantos versículos do seu texto sagrado acima de qualquer possibilidade de compaixão, de amor pelo próximo.

E o irónico é que não é o literalismo que permite chegar a uma ideia de religião centrada no amor, mas sim o liberalismo político e social. A religião como amor, como inclusão, foi conseguida no longo e brutal caminho de afirmação da modernidade. Na criação do indivíduo e dos seus direitos, na construção do Estado e dos seus princípios, na afirmação de um mundo de conhecimento assente na dúvida, no ceticismo metodológico. Tudo isso nos permitiu dizer que a pessoa humana está acima de tudo. Mesmo dos Textos Sagrados. O Estado é o espaço mental onde todos nos encontramos, nos direitos e nos deveres.

E, naturalmente, há que notar que esta construção a que chamamos modernidade teve como peças centrais algumas confissões religiosas e religiosos. É impossível compreender a Revolução Científica sem o mundo protestante, tal como as evoluções económicas e financeiras sem o judaísmo que, aliás, foi central no processo de afirmação da racionalidade cartesiana. Da mesma forma, o catolicismo foi fundamental na afirmação, no século XX, de políticas sociais, em que, juntamente com o protestantismo, criou uma importante linha que vai da doutrina social da Igreja à social-democracia. Mais perto de nós, alguns grupos cristãos que nasceram num contexto francamente literalista evoluíram para formas de confluência com as teses científicas, como é o caso de mórmons e de adventistas do sétimo dia, nada tendo de negacionistas nem de detratores dos Estados.

Contudo, o fenómeno é bem diferente no momento que vivemos. Hoje, graças à tolerância que temos para com os intolerantes, e num longo caminho que teve lugar em alguns processos de laicização e de secularização que se mostraram ineficazes ou falidos, temos um largo grupo de fenómenos radicais que colocam em risco as conquista da modernidade.

Criaram-se bancadas evangélicas que definem políticas nacionais com base na Bíblia. Assaltam-se os órgãos de soberania e rejeitam-se resultados eleitorais. Levam-se populações iletradas muçulmanas a um ódio contra a Europa que as conduz a guerras sangrentas e a realizar os mais atrozes atentados contra a vida. Mantém-se um país refém de leituras bíblicas que justificam uma postura contra os palestinianos, quer de guerra quer de usurpação dos seus territórios, que envergonharia os grandes sábios judeus que nos iluminaram durante séculos.

Em todos eles, a noção de verdade foi deitada para o lixo, regressando-se a lógicas de pensamento e de argumentação pré-moderna: para muitos nossos concidadãos, o princípio da não-contradição deixou de demonstrar que uma afirmação é falsa.

Procura-se novos messias, representando-se um medo de fim dos tempos que pugna por uma purificação através da radicalização. Adere-se, assentindo; pertence-se, por dogmatismo; luta-se, por se ver no outro o erro que tudo pode pôr em causa. O outro, o que o representa, é para ser extirpado.

A modernidade, assente numa valorização do pensamento crítico e consequente valorização do indivíduo, corre grandes riscos perante aqueles que colocam a sua leitura do mundo assente num único texto, tomado como absoluto e inquestionável.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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