A égua Estrelinha e a única vinha da cidade

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Fui à Tapada da Ajuda por causa das uvas Moscatel Galego, mas a primeira personagem que conheci foi a Estrelinha, uma égua que estava a comer palha à beira da estrada. Pertence a um grupo de cavalos garranos, raça autóctone do Norte de Portugal, que por um acaso vieram parar a estes terrenos – 100 hectares, ao todo – da Tapada, antiga coutada de caça real, e hoje propriedade do Instituto Superior de Agronomia (ISA).

A engenheira Ângela Baptista, que foi a minha guia neste passeio, contou-me como a Estrelinha se afastou do resto do grupo – trazido em tempos por um professor do ISA para um trabalho, e que depois por ali ficou – porque era atacada pelo cavalo maior, o pai, e explicou que é preciso estar atento para ver se ela está a comer bem, e se não se ressente dessa vida solitária.

Estamos em Lisboa, mas podíamos estar no meio do campo. O terreno pega com Monsanto e precipita-se em declive em direcção ao Tejo. É por isso, e por ter minas de água próprias, que vêm do tempo do reinado de D. João V, que tudo o que é produção agrícola se dá aqui tão bem. Damos uma volta de carro – deveríamos tê-lo feito a pé, mas o tempo não chegava para isso – e passamos por pomares, hortas, por campos de cereais (dos quais, através do projecto SolidarISA se recolhem grãos para dar ao Banco Alimentar Contra a Fome), por um olival, por campos desportivos, pelo velho sobreiro à sombra do qual encontramos o resto dos cavalos garranos. Contornamos o Observatório da Ajuda, passamos em frente do Palácio das Exposições, todo envidraçado, e terminamos junto à vinha – que na realidade foi o que aqui nos trouxe. 

Conta-se que os reis vinham até à Tapada caçar e que havia caça grossa, veados, gamos. Mas foram também sempre terras agrícolas, e quando o Instituto de Agronomia aqui se instalou tirou partido disso. “Há 50 anos, o ISA fornecia muito do leite à cidade de Lisboa”, conta Ângela Baptista. Havia manteigaria, queijaria, e até a UCAL trazia leite para se transformar aqui em manteiga.

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Muitos desses serviços foram desaparecendo, e a Tapada continua a ser um mundo desconhecido para os lisboetas, apesar de totalmente aberto a quem ali queira ir passear. Pelo final de Agosto, início de Setembro, abre-se para algo de diferente: aqui, na única vinha que existe dentro de Lisboa, aceitam-se voluntários para fazer as vindimas. 
No interior do portão do ISA que fica junto a um dos pilares da Ponte 25 de Abril há uma venda improvisada de uvas – nos primeiros dias das castas Moscatel Galego e Moscatel de Setúbal, que, neste microclima da Tapada, amadurecem cedo e a meio de Agosto já estão prontas para serem colhidas. Depois, com o passar das semanas, as outras castas, essas já destinadas à vinificação (e que não são vendidas ao público), vão também ficando prontas. Primeiro colhem-se as uvas brancas na chamada Vinha Nova; e depois as tintas, no Almotivo, com Lisboa e o Tejo aos nossos pés. 

Porque estas são vinhas destinadas ao ensino, há até, explica-nos Ângela, formas de preparar a videira que serão “muito raras de encontrar no mundo” – a “lys”, que permite que a videira se desenvolva em três “andares”, criando uma espécie de saiote; e a “lira”, com um suporte de madeira em forma de V para que os troncos se distribuam para dois lados. Nenhuma delas é mais rentável do que a forma tradicional, porque exigem mais mão-de-obra, mas são uma das muitas curiosidades da Tapada. 

Aqui dentro há também uma adega, onde os alunos aprendem a fazer o vinho (os voluntários que participarem na vindima poderão experimentar os vinhos dos anos anteriores), tal como há colmeias e colheita de mel, ou produção de azeite do olival. O que já não existe são os animais – a vacaria está transformada em serviços de apoio ao Instituto, e a antiga pocilga já não tem porcos, tal como o pequeno chalet onde funcionava a abegoaria já não tem cavalos. 
Os únicos orgulhosos representantes animais da Tapada, para além dos esquilos e dos patos do lago, são os seis garranos selvagens – os cinco que comem a sua palha à sombra do sobreiro, e a solitária Estrelinha. Era bom que um dia eles voltassem a ter a companhia de outros animais, e que a Tapada pudesse ser novamente o campo dentro de Lisboa que foi no passado.

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O ISA pede voluntários para a vindima até 20 de Setembro. Enviar email com nome, contacto e dias disponíveis (só dias úteis) para vindimas@isa.ulisboa.pt ou telf: 924101712

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