A emoção que arrefece

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Herói da Resistência e da Independência de Timor-Leste, 1.º Presidente da República e primeiro-ministro, Xanana Gusmão escreve poemas, inventa charadas políticas, tira umas fotografias e adora confusões. A ONU deverá criar em breve um prémio internacional para o génio que desvendar o enigma Xanana. Quem és tu, José Alexandre “Kay Rala Xanana” Gusmão (n. Manatuto, 1946)?

O último teorema de Fermat levou 300 anos, mas acabaria por ser demonstrado em 1994, estava Xanana a pintar quadros numa prisão indonésia, porque também é pintor, e com um boné do Benfica enfiado, porque além disso é treinador de básquete e futebol, e sabe cozinhar, sem esquecer que conhece a selva como ninguém e, pior, várias assembleias da República, além disso ainda se deve lembrar de como se desmonta uma G3 de olhos fechados num minuto, etc.

Quem será o homem, de facto. Sabemos lá nós, se soubéssemos, estávamos ricos (e ele estará ou não estará?). Uma das particularidades dos timorenses, diz quem os conhece bem, é a sua afabilidade e ferocidade simultânea, aquela maneira de pegar na catana num segundo comovido à Sudeste asiático. Não se sabe até que ponto um timorense se ofende com o que ouve… por exemplo, com estereótipos paternalistas como este (que acabam de ler) é quase certo.

Toda a vida de Xanana tem sido um balançar entre pulsões e atracções extremas que não se esperavam de um rapaz banal. Um empregado de correios, ex-militar do exército português que, contra sua vontade, e com as sucessivas decapitações dos chefes da guerrilha em combate e o genocídio do seu povo, ascendeu ao posto máximo da feroz, heróica e organizada resistência nas belas montanhas de Timor, nos anos da ocupação.

Xanana era então ou “terrorista” ou “combatente da liberdade”, dependia de quem falava. Hoje, longe dos anos de quase unanimidade, voltou a esticar as opiniões e a lançar a confusão. Inteligente ou simplório, abnegado ou calculista, servidor do seu povo ou, afinal, político “igual aos outros”, etc.

Depois de preso, em 1992, e detido na cadeia de Cipinang, Jacarta, Xanana anunciava aos seus captores que queria confessar os crimes contra a Indonésia. Estava arrependido. Traidor, traidor, choraram ex-admiradores em todo o mundo. O organizador secreto da marcha dos estudantes de Díli — que estivera na origem do terrível massacre do cemitério de Santa Cruz, em 1991 — conseguia assim convocar a imprensa internacional para o julgamento. Ia pedir desculpa e apoiava a “integração” da nova província. Golpe de mestre. Sem que os indonésios o pudessem calar, disse o contrário ao mundo: os timorenses não abdicavam da autodeterminação.

Assim se fez. Mais tarde houve o referendo, a razia e a destruição de Díli pelas milícias pró-Indonésia, a intervenção da ONU, finalmente a independência.

Mas hoje escreve-se nova história sobre a linha invisível dos 14 mil quilómetros que separam Portugal de Timor. Xanana é, nos últimos anos, exactamente o quê? Quando diz que “manter a imunidade dos governantes visa proteger o país”, não quererá dizer proteger os meus? Ao expulsar pelo “interesse nacional” e numa correria de 48 horas sete magistrados portugueses poderá ter sido, afinal, porque as investigações destes — como é publicado no Diário de Notícias de 6 de Novembro — indicavam que “pelo menos oito ministros timorenses estariam a favorecer empresas de familiares seus em ajustes directos para obras públicas”.

As fontes do DN falam da situação como “uma enorme teia de ligações de onde se extraíram suspeitas, ao mais alto nível, de crimes como corrupção, abuso de poder, participação económica em negócio e peculato”.

Por outro lado, quando ouvimos Xanana falar em “incompetência” do pessoal da cooperação judiciária portuguesa em Timor, o nosso coração roído pelo Citius abre as válvulas. “Os erros foram tantos, foram tão inadmissíveis, que parámos para não influenciar o processo, porque estamos em recurso para recuperarmos o dinheiro que é nosso.” Isto é, disse Xanana à agência Lusa, Timor estará a perder milhões em processos contra as petrolíferas por faltas várias dos magistrados, como processos em que se fez copy paste sem mudar os argumentos, só os valores em causa. “Eu aceitaria se perdêssemos porque não apresentámos bem os factos ou não temos visão. Não aceito por irregularidades, negligência e talvez diga má-fé, por parte de alguns actores, que nos fazem perder os processos.”

O constitucionalista português Pedro Bacelar de Vasconcelos, que ajudou a redigir a Constituição de Timor, deita, em declarações ao PÚBLICO, um balde de água fria sobre os ofendidos com Xanana, em Portugal: “A justiça timorense está completamente parasitada por funcionários internacionais ao serviço dos mais variados interesses.”

E no meio disto, Xanana diz aos governantes e aos portugueses: “Só peço para reduzirem um bocado a emoção com que se expressam.” Como? Um homem que vimos chorar como um miúdo, que fez chorar tantos milhões pelos mais nobre ideal, a liberdade, pede-nos controlo da emoção. O tempo julgará o velho comandante. Se isto é para rir, para chorar, para derramar lágrimas ou gotas de petróleo. Proclamou Rui Cinatti em Díli:

A vida é toda mistério.

Quem largamente se deu

Não ofendeu a justiça

Mas viveu do coração.     

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