A Guerra dos Cromos

Foto

“A mão do jornalista ‘best-seller’ arranhou a terra como uma aranha de cinco pernas e ergueu os negros arquivos. O filósofo-político brandiu o machado e urrou. Então o castelo da televisão pública despertou para o cheiro gorduroso da carne humana no espeto. A Arena da Carnificina iluminou-se com os archotes-holofotes. De súbito, não era noite e estavam os dois frente a frente para a batalha. 
Aconteceu tudo ao mesmo tempo. A madrugada encheu-se de gritos e berros, o ar ficou pesado com o cheiro do sangue e o mundo transformou-se em caos. Setas voaram a silvar junto à orelha, lanças roçaram o nariz do outro e ricochetearam nas rochas. Seiscentos e trinta mil espectadores, mais coisa menos coisa, morreram esmagados com uma maça na cabeça enquanto a nobre dama de Porto Gal — a frágil Lady Verdade — segurava desajeitadamente as folhas de audiências com as mãos mutiladas.”

Assim começa, e pelos vistos não acaba tão cedo, a temporada pós-PEC IV daquela que foi considerada “A melhor fantasia televisiva dos últimos 50 anos” (The Belém Post), que explora o melhor que o género da ficção política tem para oferecer: magia, mistério, intriga, romance, traição, descaramento, lugares-comuns e luta de dois convencidos impossível de esquecer. “Desde que Cavaco Silva fez a rodagem do carro, Guterres se afundou no pântano, Durão fugiu para Bruxelas e Bilbo encontrou o Anel, não se via nada de tão encantadoramente excêntrico” (The S. Bento Trumpet).

Não é para menos: na série transmitida em directo pelo canal ScyPol (Ficção Política) da RTP1, todas as personagens morrem no fim. Mas todas mesmo, e por mais importantes que as julguemos ou as próprias julguem ser. Principais, secundárias, terciárias, microbianas, presentes ou apenas faladas de esguelha e para dizer mal, de repente saem do ar e caem no limbo. Como se nada fosse eterno e não pudéssemos confiar em nada. É uma revolução televisiva e, ao mesmo tempo, uma vibrante imagem do mundo do comentário político.

Ninguém está a salvo. Quinzena após quinzena (outra inovação, a periodicidade), tudo aquilo em que assenta o mundo de fantasia dos dois protagonistas actuais é arrastado pelo turbilhão da história e o bilioso cheiro da vaidosice. Mas com mais interesse do que anteriores produções do género fantasista, porque, agora, vamos além das cenas com muito sangue, muito sexo, mulheres nuas, incestos e palavras como “deleite” e “lamentoso”. Também pode sair da boca do lado esquerdo do ecrã (dos Santos) uma sopa de peixe com leite de mama de mulher e vários órgãos viris intumescidos, a par de testas perladas de suor e o constante tambolirar de dedos na mesa, um cardápio linguístico que não o vai deixar dormir em segurança. E do lado direito da mesa (Sócrates), podemos engolir frases como “ética da responsabilidade” e “doutrina deontológica” a cada cinco segundos desta extraordinária Guerra dos Cromos. Para lá e para cá da muralha ameaçadora, há bandos de selvagens, o perigo entrou nas casas. Um trágico casamento que acabou em mortandade… e já estamos noutro. Rodrigues dos Santos consulta papéis:
— O Inverno está a chegar. E as eleições europeias também, está nos meus arquivos.
— A próxima vez que levantares a mão para consultares os teus arquivos vai ser a última vez que tens mão.
— Nem os deuses nem os homens me vão convencer a transformar a minha RTP no teu bordel.
— Talvez também tu sejas um filho do clã no poder, os Passos Coelhistter. Tens as orelhas, mas falta-te a inteligência, não basta papaguear mentiras dos outros.
— Registo o insulto, ao qual não vou responder. Quer dizer, dá-me mais 15 dias, narigudo.
— Na primeira vez não vinha preparado para isto e empurraste-me pela janela. 
— As coisas que faço por amor. Estávamos ou não em bancarrota contigo a mandar?
— Mais uma vez leste mal, advogado do diabo, estou a citar-te bem, ignorante?
— Se me voltas a chamar isso, vou estrangular-te durante o sono.
— É o nome da família do PS que sobrevive comigo. É tudo o que sobrevive. Bom, tenho fome, pretendes executar-me ou estou livre?
— Nenhum de nós é livre, somos guerreiros do Telejornal de Domingo, no fim do buraco das audiências.
— O caos não é um buraco. O caos é uma escada. Qualquer um pode tropeçar nas orelhas e cair da escada ao sair do estúdio.
— Há uma certa segurança na morte…
— Então vamos decapitar-nos um ao outro. Chama-se a isso um consenso. É tão divertido.

Sugerir correcção
Comentar