A missa dos encapuçados

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Imagine-se o ambiente: longos corredores, passadiços de ferro, portas metálicas que se abrem para deixar passar um homem, e que logo se fecham deixando no ar um eco gelado. Muitas portas, muitos homens, um eco repetido. Não há luz do exterior. Os homens têm os rostos tapados por um capuz e avançam pelos passadiços de metal. Ouve-se apenas o som dos pés. E mais portas que se abrem e fecham.

De cada um dos corredores converge para o mesmo local, no centro da prisão, um grupo de encapuçados. Não falam. Estão proibidos de o fazer. Chegam finalmente ao centro e cada um toma o seu lugar num pequeno cubículo que lhe está destinado num enorme anfiteatro. Por cima de cada cubículo, um número. Todos os homens olham para o mesmo ponto, no centro. Do interior do cubículo não se vêem uns aos outros. Podem, finalmente, tirar os capuzes.

Há apenas um homem que vê todos aqueles rostos. É o padre, que está no centro, junto do altar com a grande cruz. O centro é uma capela monumental, de tecto altíssimo e vitrais por onde, agora sim, entram raios de luz do exterior. Lá em cima, a cúpula, com 24 janelas ogivais com vitrais. O padre olha os homens silenciosos, um rosto branco em cada cubículo. Um número por cima. A missa começa.

A voz do padre ecoa nos espaços metálicos, pelos corredores, as celas, os passadiços. Os homens escutam em silêncio. No final, voltam a colocar os capuzes que lhes garantem o anonimato. Com a farda da prisão vestida, parecem todos iguais. Só os olhos vivem por entre os espaços rasgados no tecido. Seguem pelos passadiços metálicos, de regresso às celas. As portas metálicas batem de novo, uma após a outra.

Estamos no coração do Estabelecimento Prisional de Lisboa, na Rua Marquês da Fronteira, no cimo do Parque Eduardo VIII. Do exterior parece um pequeno castelinho. Mas se o pudéssemos ver de cima perceberíamos a sua forma de estrela de seis braços: o centro, onde se situa a tal capela monumental, do qual saem os braços com as celas e os passadiços de metal.

Paulo Adriano, antigo guarda prisional, e autor da uma tese intitulada A Casa do Silêncio — a Penitenciária Central de Lisboa (um estudo que foi fundamental para se reconhecer a importância deste edifício e para permitir a sua classificação), acompanha-nos e conta a história desta prisão extraordinária, um exemplo da arquitectura do ferro, inaugurada em 1885. “No século XIX, dá-se uma grande revolução na forma como o recluso é tratado. Em vez de ser esquartejado, o objectivo é que seja regenerado, e isso faz-se através do estudo e da religião”, explica-nos.

Em vez de irem parar a celas sobrelotadas em prisões insalubres, onde as doenças se espalham pelo ar pestilento, como era na altura a do Limoeiro, os reclusos passam a dar entrada no edifício da Penitenciária, um espaço higienizado, onde têm uma cela individual, e onde deverão, teoricamente, passar por uma experiência de limpeza também interior, que permita devolvê-los à sociedade regenerados.

Paulo Adriano conta que os presos preferem o Limoeiro, onde apesar das condições, podem conviver uns com os outros e, sobretudo, falar. Mas o capuz, que parece um castigo medieval, é na verdade uma forma de proteger a privacidade e impedir eventuais chantagens quando saírem em liberdade.

E toda a arquitectura, inspirada na da Penitenciária belga de Lovaina, visa precisamente transformar o criminoso num homem pronto a reintegrar-se na sociedade. No centro da estrela estão, portanto, no topo, a capela, e por baixo desta, mas também visível a todos os reclusos nos seus cubículos, a sala de aula. Desse lugar nevrálgico, capelão em cima e professor em baixo, emitem os ensinamentos que, espera-se, hão-de entrar profundamente naquelas almas.

Debaixo da capela (que continua a ser um local extraordinário) e da sala de aula, fica o espaço de vigia. O sistema panóptico desta penitenciária, muito em voga na época, permitia que um ou dois guardas, a partir desse ponto central, fossem suficientes para vigiar os seis braços-corredores.

Para entrar nesta “cidade punitiva”, como lhe chama Paulo Adriano, percorria-se o “corredor iniciático” (ainda hoje é por aí que se faz a entrada), onde o recluso tomava banho, vestia a farda, colocava o capuz e cumpria as burocracias administrativas. Por fim, transpunha um último portão e entrava na Casa do Silêncio. A partir daí, o seu mundo passava a ser o de sinistras figuras sem rosto, portas de metal a bater, raios de luz a atravessar vitrais e a voz do capelão a ecoar nos espaços frios, nas cabeças e nas almas.

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