Bomba e circunstância

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A defesa dos condenados a prisão efectiva (isso é o que ainda vamos ver...) no processo Face Oculta continua a procurar saídas no ferro-velho dos tráficos de influência entre a política portuguesa e os sucateiros. A destruição das escutas telefónicas entre o ex-primeiro-ministro José Sócrates e o ex-ministro Armando Vara poderá ter sido mal executada, pois apenas se usaram uns insignificantes x-acto, tesoura e trituradora, durante várias horas. O delicado desta situação legal — escutas laterais que nada tinham que ver com a acusação — exigia pelo menos lança-chamas, banheira de ácido sulfúrico ou canhão de 120 mm, uma vez que Portugal ainda não dispõe de bomba atómica. 
Anule-se o julgamento já.

Por outro lado, para horror e tristeza da defesa de Vara, com o x-acto, a tesoura e trituradora, já se destruíram irremediavelmente escutas fundamentais que podiam levar à descoberta cabal da verdade no Tribunal de Aveiro, o que é uma vergonha e um atentado ao Estado de direito. Realmente, manter estas escutas intactas era fundamental à defesa e ao equilíbrio dos direitos dos cidadãos arguidos agora condenados.
Anule-se o julgamento já, mas já.

Se nada disto resultar, prepara a defesa, há um terceiro argumento imbatível: não é possível acreditar que nas escutas entre dois altos responsáveis da nação estivessem conversas foleiras como as transcritas pelo próprio Ministério Público:
“— Seja lá como for, a gaja ter deixado de fazer o Telejornal é bom para ti.
— É bom, mas é uma gaita. Quando já ninguém acreditava naquela gaja, agora é que correm com ela, e logo em vésperas de duas eleições?
— Mas como é que a gaja saltou?
— Sei lá. Foi uma decisão da Prisa Espanhola e do camelo do Juan Luis Cebrián, que anda às turras com o Zapatero.
— Mas terem corrido com a gaja é um alívio para ti.
— Porra! Se queriam correr com a gaja, ao menos esperavam até depois das eleições. Fazer esta coisa agora parece encomendado.
— Que se lixe, foi à vida, foi à vida. Não ficas satisfeito?
— Claro. Claro que fico. Por um lado, fico. Quero que aquela grande puta se lixe.”

Felizmente que as destruíram para sempre e ninguém vai conhecer estas conversas. É decididamente uma transcrição forjada, um boato, um texto apócrifo, telefonisticamente falando. Alguém acredita que dois estadistas, um deles primeiro-ministro socialista, e um seu amigo de infância, parceiro de negócios e ex-ministro do PS podiam falar assim, de forma grosseira, de uma pivô da TVI a quem, ainda por cima, acusam de ter sempre “a boca aberta”? Só malucos.

O julgamento é nulo por nula nulidade porque estão a usar “a circunstância” contra o “chocado” Armando Vara e demais arguidos do Face Oculta.
Além disso, durante o julgamento, os juízes pediram a todos para agir, neste caso, como se as escutas “não existissem”. O que é a mesma coisa que pedir à mulher que apanhou o seu marido em flagrante a elogiar a grandeza política de António José Seguro para continuar a fazer de conta que nada aconteceu lá em casa.

Vara, uma figura que ficará na História como o homem que, ao ser condenado a cinco anos de prisão por vários crimes de suborno, tráfico de influências, acha que foi apenas questão da “minha circunstância”. Um ex-político português que foi de bancário a banqueiro, numa alucinante biografia sempre a crescer, a acelerar do interior ao litoral, da província à capital, onde finalmente se despista (não seguiu as normas da sua Fundação para a Segurança Rodoviária, com dinheiros públicos):

Armando António Martins Vara — 27 de Março de 1954, Lagarelhos, Vinhais, Bragança, Portugal, Caixa Geral de Depósitos, Banco Comercial Português, Estabelecimento Prisional algures na Península Ibérica. Deputado aos 31 anos, depois secretário de Estado, ministro da Juventude e Desporto. Entre as ordens honoríficas, tem a importante Grã-Cruz da Ordem do Infante. Ainda poderá receber a medalha de Santa Ana, padroeira dos sucateiros, e Santa Bárbara, padroeira das tempestades, dos pescadores e dos robalos. 

Em 2012 e 2013, levou duas multas de 40 e 50 mil euros por negligência e violação do direito de defesa do mercado (como vice-presidente da CGD), mas só porque é distraído, ele também se terá esquecido de devolver ao sucateiro Manuel Godinho uns vinhos do Porto vintage, canetas, relógios, robalos frescos e, onde é que teria a cabeça, 25 mil euros facilitadores.

Algures na vida, estudou Filosofia na Universidade Nova de Lisboa, que não acabou, mas fez Relações Internacionais na Independente (essa universidade que acabou). Poderá agora dedicar-se ao Direito. Um amante da sabedoria apreciará estudar com profundidade o termo Pactum Sceleris (pacto criminoso) pelo qual foi condenado.
No entanto, a defesa prepara o ataque. Se a nulidade do julgamento de Vara for para a frente, mais uma vez desconheceremos em que vara se fez justiça.

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