Manuel Villaverde Cabral: O encanto da sociologia

Profissão: sociólogo. Manuel Villaverde Cabral atravessou formações e disciplinas, teve sempre uma atracção pelas zonas de cruzamento e indefinição dos saberes, mas o apelo da sociologia foi mais forte.

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Manuel Villaverde Cabral é uma figura de primeiro plano na história da sociologia em Portugal, quer pela sua produção nessa disciplina científica, quer pelo papel que desempenhou na fixação e autonomização, em termos institucionais e profissionais, do campo das ciências sociais. Não foi o único, é certo. E teve antes de si, como pioneiro, a figura de um fundador, 12 anos mais velho: Adérito Sedas Nunes, “pai” do Gabinete de Investigações Sociais (GIS) — começou a funcionar em 1962 e foi extinto em 1982, precisamente para dar lugar ao Instituto de Ciências Sociais (ICS) —, onde Villaverde Cabral fez grande parte da sua carreira intelectual, de cientista social e professor.

Quem hoje, numa posição distante e de leigo, acompanha a forte, importante e numerosa produção nesta área do saber e da investigação não consegue adivinhar como se deu uma consolidação muito rápida, já que a sociologia, em Portugal, só muito tardiamente ganhou um estatuto académico e profissional.

A biografia intelectual de Villaverde Cabral confunde-se, a partir de Abril de 1974, com essa história, que pode ser narrada em tom jubilante. Ingressou, como assistente, na universidade, mais propriamente no ISCTE, em 1974, quando tinha regressado de Paris, e descobriu aí, como uma “revelação” (são palavras dele) a sua vocação de professor. Quase ao mesmo tempo (e podemos suspeitar que os dois factos estão ligados) sofreu um desencanto da vocação política

Sigamos, então, em traços largos, o seu percurso biográfico até ao apelo vocacional. Nasceu nos Açores em 1940, mas foi em Lisboa que concluiu o Curso Geral dos Liceus, em 1957. Chegou a inscrever-se, no ano seguinte, em Arquitectura, na Faculdade de Belas-Artes, mas foi uma falsa partida, e abandonou pouco depois para começar a trabalhar nas Publicações Europa-América.

Que a sua estreia, enquanto estudante universitário, se tenha feito em Arquitectura; que em 1968, cinco anos depois de ter chegado a Paris, se tenha licenciado em Letras (Lettres Modernes); que 11 anos depois, em 1979, se tenha doutorado em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales — mostra bem que estamos perante um espírito ecléctico e com uma grande vocação (a palavra impôs-se desde o início e não nos vai abandonar até ao fim da entrevista) para atravessar saberes e fronteiras disciplinares, movendo-se com tanto fascínio pela ciência como pela arte.

A Paris, não chegou Villaverde Cabral por vontade de diletante ou de cosmopolita, nem por razões de trabalho ou de estudo. Chegou, em 1963, para fugir de Portugal, como grande parte da sua geração, com um currículo de militância política no PCP, iniciada em 1958. Em Paris, ligou-se a ambientes políticos da esquerda radical e, em 1967, criou os Cadernos de Circunstância, uma revista de resistência ao fascismo, de teor marxista-lenininista, editada entre 1967 e 1970, em Paris, e distribuída clandestinamente em Portugal.

Mas o seu percurso político é, pelo menos no nosso contexto, muito singular (diríamos mesmo, único) porque entrou em contacto com algo que teve pouquíssimos ecos por cá: o obreirismo italiano, o operaismo, nomeadamente com a sua organização mais representativa, o Potere Operaio, criado em 1969 por Toni Negri. As portas da fábrica da Fiat, em Turim, Porto Marghera, em Veneza, e Bolonha são lugares bem conhecidos das andanças políticas de Villaverde Cabral, nessa época. Tal como figuras importantes como Massimo Cacciari, Mario Tronti e Toni Negri. Deste último, continua amigo e pôde contar com um texto seu num livro de homenagem editado e apresentado no mês passado, no auditório do ICS, por dois investigadores de uma geração mais nova, José Machado Pais e Pedro Magalhães, que deram assim testemunho público da sua dívida para com um dos protagonistas da sociologia em Portugal.

O livro chama-se Ciências Sociais: Vocação e Profissão. Homenagem a Manuel Villaverde Cabral (ICS, 2013, 632 páginas) e nele participam 30 pessoas, algumas delas de outras disciplinas fora das ciências sociais, o que mostra bem que Villaverde Cabral atravessa territórios vários e heteróclitos. Daí que um dos colaboradores no volume, o francês Yann Moulier Boutang (também ele uma figura muito significativa da vida intelectual e política de Paris), lhe chame “le passeur intranquille”.

Para além de uma introdução biográfica, o livro contém uma grande entrevista, onde se traça de maneira muito exaustiva o percurso biográfico e intelectual do sociólogo, desde a sua juventude. A circunstância dessa homenagem plasmada em livro e a extrema actualidade, no momento que estamos a viver, em Portugal, das questões da investigação científica e das condições pragmáticas e políticas que a condicionam são as razões desta entrevista.

Importa dizer ainda que ele foi vice-reitor da Universidade de Lisboa, entre 1998 e 2002, e em 2009 e 2010; e que foi director da Biblioteca Nacional de 1985 a 1990; e que nos últimos anos dirigiu o Instituto do Envelhecimento da Universidade de Lisboa (o envelhecimento da população é uma das linhas de investigação que tem seguido). Talvez menos necessário, para o que aqui nos interessa, seja dizer que Villaverde Cabral foi um dos fundadores (com José Pacheco Pereira e João Carlos Espada) do Clube da Esquerda Liberal, em 1984. Menos necessário porque menos representativo, já que a regra que, em geral, seguiu, depois de 1974, foi o afastamento em relação a actividades e militâncias políticas (mas com intervenções cívicas frequentes, na esfera pública) e a imersão no ensino e na investigação. De qualquer modo, as intervenções de carácter político de Villaverde Cabral, as suas declarações e entrevistas, tiveram quase sempre, nos últimos anos, um lado heterodoxo, muitas vezes polémico e provocatório, difícil de situar num lugar ideológico fixo, podendo oscilar escandalosamente no mostrador do espectro ideológico.

Comecemos pela história da sociologia em Portugal e da sua institucionalização universitária, já que está numa óptima posição para a contar.
A sociologia acabou por se fazer graças ao 25 de Abril, até aí era basicamente professoral, sem investigação nem crítica. Há estudos a este respeito, por exemplo de Manuel Braga da Cruz. Há um mais recente sobre o próprio aparecimento do antepassado do Instituto de Ciências Sociais, o Gabinete de Investigações Sociais, dirigido pelo Adérito Sedas Nunes desde final dos anos 60, que vem de grupos católicos corporativos que se começam a desligar do salazarismo, quando Salazar é substituído por Marcello Caetano. Há interesse até do futuro bispo Manuel Falcão pela sociologia da religião. Portanto, em Portugal, a sociologia fez-se depois do 25 de Abril, com pessoas novas que vieram de outras áreas: o Direito, a História, a Economia, etc.

A hostilidade do salazarismo em relação à sociologia deve-se à suspeita de que ela estava comprometida com visões progressistas e até marxistas?
Basicamente, sim. Mas há também um corporativismo profissional. E sentimos isso, depois do 25 de Abril, quando transformámos de facto o ISCTE, destinado à formação na gestão de empresas e do pessoal, numa escola de sociologia. Criámos aí uma licenciatura de sociologia que levou anos a ser reconhecida pelos próprios regimes democráticos.
E durante décadas os licenciados em Sociologia não tiveram qualquer preferência na habilitação para serem professores de Sociologia no secundário; tinham de competir com os licenciados em História, em Direito, etc.
A sociologia que dominava nas Faculdades de Direito era completamente escolar. Existem manuais, mas não há estudos senão fora da própria Academia, desde o século XIX até praticamente ao 25 de Abril. A grande maioria dos cientistas sociais, em sentido lato, não tinha formação específica. Alguns dos mais importantes nem tinham formação académica (Alexandre Herculano e Oliveira Martins por exemplo), alguns tinham formação académica em Direito mas não nas ciências sociais em que se distinguiram.
Uma ciência, antes de ser ciência, começa por ser vocação, como explicou Max Weber. Nesse sentido, há uma matriz comum de chamamento, de apelo. Robert Merton estudou na linha de Weber o surgimento da ciência no século XVII, com figuras como Newton e Kepler, cujo apelo pela ciência possui uma dimensão de transcendência, mas rapidamente a ciência vai-se distinguir da religião e também da arte, com a qual partilha, digamos assim, uma dimensão vocacional originária, para se profissionalizar. Temos um exemplo curioso com Álvaro Cunhal, que escreveu na prisão A Questão Agrária em Portugal, que é uma tese de doutoramento tão boa ou melhor como aquelas que ainda hoje se fazem nas nossas universidades. Mas foi a polícia política que, paradoxalmente, pagou o famoso ócio, de que falava Marx, necessário à arte e à ciência; Cunhal, sem a prisão, possivelmente não teria feito a investigação que fez.

Em Portugal, é muito fácil identificar os pais fundadores da sociologia: Sedas Nunes, evidentemente, mas a si também lhe é reconhecido um papel importante.
É uma questão geracional. Eu venho da História, e Sedas Nunes era economista, nunca estudou as ciências sociais modernas na universidade, até porque elas não existiam em Portugal.
Os primeiros sociólogos portugueses formam-se no estrangeiro. É o caso de Hermínio Martins, com uma licenciatura pluridisciplinar, como é típico de Inglaterra. Digamos que os fundadores da sociologia em Portugal são bastantes mais do que aquela lista habitual em que o meu nome também aparece.
Mas não esqueçamos que até ao 25 de Abril não há nas Faculdades de Letras, em História, uma única tese de doutoramento sobre o século XIX, para já não falar do século XX. Nesse aspecto, está bem marcada a longa vigência de um fascismo caseiro que poderá ter sido menos brutal do que outros, mas foi tão sistemático ou ainda mais do que a maioria dos outros. A censura vigorou sem falhas desde o primeiro ao último dia. Os artigos eram vistos e revistos, assim como as disciplinas e os programas, e os professores eram vigiados.
A dimensão política da vocação para as ciências sociais é justamente uma coisa que conheço muito bem porque a vivi, como explico no livro colectivo com que os meus colegas quiseram homenagear-me, numa entrevista que me fez uma antiga doutoranda italiana, Guya Accornero, autora de uma tese muito interessante sobre o movimento estudantil antes do 25 de Abril.

Nunca houve da parte do Estado Novo a tentativa de fazer da sociologia uma ciência legitimadora da sua ideologia e das suas práticas?
Isso aconteceu em Espanha e em Itália, onde havia uma tradição das ciências sociais muito mais antiga e muito mais forte, misturada com a filosofia, a história, a ciência política. O pensamento elitista italiano anterior ao fascismo não desapareceu. Essas disciplinas continuaram a funcionar academicamente dentro dos regimes espanhol e italiano.
Há uma questão inegável: o elemento político e ideológico faz parte quase natural da vocação para as ciências sociais. Costumo dizer a brincar: uma pessoa indiferente ao ordenamento social pode ser um grande médico ou um grande engenheiro, mas é difícil que possa ser um grande sociólogo. Porque a vocação para as ciências sociais começa no momento em que se entra numa relação de estranheza, dúvida e interrogação acerca da realidade social. Se essa realidade parece natural e dada de uma vez por todas, não há vocação. Mas levanta-se o problema de essa inquietação e de essa vizinhança com as ideologias políticas poder contaminar — e acontece muitas vezes — o próprio trabalho que se pretende científico.

Falou do gesto fundador da sociologia que é o olhar de interrogação da sociedade. Um olhar interrogador é também um olhar que dá origem a um pensamento crítico.
Claro que sim. Essa discussão, em Portugal, foi muito protagonizada por Boaventura de Sousa Santos, que nos interpelava frequentemente em conferências a partir daquilo a que ele chamava uma “sociologia crítica”. E eu respondia-lhe: sociologias críticas são todas, a minha é crítica da tua e a tua é crítica da minha. Ninguém faz sociologia para legitimar o que existe. Terá talvez acontecido em Espanha e em Itália, mas nunca foi nem irá longe. Uma sociologia amarrada à política tem sempre os dias contados do ponto de vista da criatividade e da produtividade científicas.

Mas isso passa-se não apenas com a sociologia, mas com todas as ciências.
Evidentemente. Só que as outras ciências, como não têm uma dimensão política e de transformação do mundo quase co-natural, não suscitam tão imediatamente a questão. As ciências sociais não podem deixar de ser revisionistas, quem chega revê os erros e os equívocos de quem o precedeu. Quando comecei, fiz isso relativamente à problemática do desenvolvimento, defendida por Miriam Halpern e Magalhães Godinho. Parecia-me que eles tinham uma perspectiva social-democrata do desenvolvimento, enquanto eu tinha uma perspectiva mais marxista, do tipo da que Lenine tinha do desenvolvimento do capitalismo na Rússia. E por isso escrevi e publiquei o meu livro sobre o desenvolvimento do capitalismo em Portugal no século XIX, que ao mesmo tempo lidava com a problemática do atraso económico no país.

A oposição entre Geselschaft e Gemeinschaft, estabelecida pelo grande sociólogo alemão Ferdinand Tönnies, recobre de algum modo a diferença entre um pensamento sociológico de esquerda e um pensamento sociológico de direita?
Não esqueçamos que há uma direita revolucionária que também quer mudar o mundo, nem que seja para trás. O fascismo, na sua pureza, tanto o italiano como o nazi, não pretendia conservar, pretendia mudar. Em contrapartida, [Émile] Durkheim era um conservador que tinha uma posição de centro-esquerda, como o próprio Talcott Parsons, nos Estados Unidos, que era contra a guerra do Vietname.
A politização, ideologização e até partidarização das ciências sociais são uma tentação e um inconveniente permanentes. Poderia aqui evocar [Niklas] Luhmann, que é um sociólogo conservador, um sociólogo de “o que tem de ser tem muita força”. O ter muita força não significa que seja bom, mas também não significa que seja mau. E faz parte da nossa profissão compreender esses mecanismos.
A consumação da divisão entre sociedade e comunidade, por um lado, é teórica, foi concluída por Max Weber. Por isso é que Weber é mais importante para mim do que Durkheim. Porque Durkheim é o rei da simultaneidade, da co-presença das comunidades dentro das sociedades, e talvez por isso muitos dos seus principais descendentes estejam na antropologia, que é mais a ciência das comunidades do que das sociedades. O que é que as distingue? As sociedades são livres, eu posso entrar e sair, emigrar para outra sociedade; em comunidade, no sentido da antropologia clássica, eu faço parte de um grupo fechado. Em suma: a separação entre Geselschaft e Gemeinschaft, na minha opinião, está consumada pelo desenvolvimento das sociedades ocidentais. Talvez não possamos aqui incluir o Japão, que é um mistério sociológico.

Os nossos conceitos e categorias não se aplicam a ele?
A sociologia continua a ser muito ocidental, o que mostra que o nosso grau de cientificidade é bastante mais limitado do que, por exemplo, o da bioquímica. Quando falamos do papel dos BRIC, e em particular da China e da Índia, temos de ter em conta que as suas estruturas mentais, para falar à maneira de Durkheim, são suficientemente diferentes para nos perguntarmos se os mecanismos ditos capitalistas, pretensamente universais, vão funcionar tal e qual.

Evoquemos uma figura exterior à universidade, como é Georges Bataille, e o Collège de Sociologie. Há aí um pensamento “sociológico” que vem de estranhas regiões, inabitáveis para a ciência sociológica.
Isso já existe num antropólogo como Marcel Mauss, no famoso Essai sur le Don. Casos como os de Bataille e Mauss situam-se nas fronteiras interdisciplinares, borderline, existiram sempre e continuarão a existir porque fazem parte da evolução das ciências sociais. Eu direi que figuras como Bataille trabalham onde as ciências sociais, pela sua profissionalização, tenderão a trabalhar cada vez menos. E podemos mencionar outros nomes, como [Giorgio] Agamben e [Slavoj] Zizek, que trabalham também nessa zona, na zona do porquê. Como o José Gil, em Portugal, no seu Medo de Existir, ou um Toni Negri no seu Imperio e na sua Multitudine.
A profissionalização sociológica, pelo contrário, responde ao como, ao quem, ao onde, mas tem de ser muito cuidadosa acerca do porquê. Gosto de ler os livros borderline porque aí se encontram frequentemente metáforas que nos ajudam a sair dos impasses empíricos e, como dizia o meu querido Fernando Gil, “mais vale uma boa metáfora do que um mau conceito”.

Aceitamos com naturalidade a designação de “ciências sociais”, mas instaura-se uma hesitação quando se fala em “cientista social”…
Tem toda a razão. Mas não posso deixar de reconhecer e até de reivindicar que sou muito um “cientista social”. Digo isso pensando na minha experiência inglesa, depois da experiência francesa.
Em França, onde estive até ao 25 de Abril, era historiador e procurei interpretar o papel de historiador aplicado a Portugal no século XIX e no início do século XX. Em contrapartida, em Oxford, onde estive a seguir ao 25 de Abril durante três anos, não havia licenciatura em sociologia nem sequer em antropologia. Havia doutoramentos nessas áreas, mas a formação originária era em Social Sciences, tipicamente um curso chamado PPE, isto é, Philosophy, Politics and Economics. O meu é um caso limite, o de alguém que passou a certa altura da história para a sociologia. Nunca fiz antropologia, mas fiz trabalho de campo e foi muito interessante. Só que, talvez por influência originária do marxismo, coloquei-me sempre mais do lado da Geselschaft, da sociedade, do que da Gemeinschaft, da comunidade.

Quando passou de França para Inglaterra mudou também completamente de latitude cultural?
Mudei bastante, mas ao contrário de muitos colegas meus, que quando descobriram o mundo anglo-saxónico deitaram fora o bebé com a água do banho francês, eu nunca deitei e considero que é uma asneira fazê-lo.

E o que é o bebé francês?
É um certo estruturalismo, no fundo. E veja-se como os estruturalismos emergiram em língua inglesa, prova de que há coisas que não desaparecem facilmente. Mas acho lamentável estudar [Pierre] Bourdieu ou [Jacques] Derrida sem os ler em francês. Quando leio Bourdieu em inglês, reconheço que não estou diante do mesmo Bourdieu. As ciências sociais nunca atingiram, nem têm de atingir, um grau de formalização que nos emancipe da linguagem natural, da língua materna. Foram os anglo-saxónicos que impuseram uma dominação que não resolve o problema, pelo contrário, só complica. Algo se perdeu em parte com a anglo-saxonização das ciências sociais. Não se pode desprezar as sociologias de língua não inglesa. Neste momento, os alemães dão cartas.

A enorme irradiação dos cultural studies desalojaram aquilo que nos anos 1960 e 70 surgiu como uma enorme constelação, a “Teoria” — a “Theory” — que unia ou criava pontes entre as várias ciências humanas e sociais…
Voltamos um pouco à questão dos discursos de fronteira. A minha reacção pessoal é esta: quando me confronto com essa produção, isso cria em mim um movimento contrário no sentido de consolidar a minha área. Lembro-me de ter lido uma vez no Times Literary Supplement uma crítica de uma senhora que fazia um grande elogio de uma das obras monumentais do [Fernand] Braudel, que tinha sido então traduzida para inglês, dizendo mais ou menos isto: é verdade que naquela parte do Oriente que eu conheço, o que ele diz está tudo errado, mas o livro é fantástico na mesma.
A chamada “teoria” é demasiado global, demasiado abusiva dos espaços intersticiais gigantescos de ignorância e mobiliza conceitos com um à-vontade que não resiste aos estudos concretos. É aí que eu prefiro os estudos mais aplicados, mais definidos disciplinarmente. Prefiro, por exemplo, os estudos dos media, em vez de uma pretensa teoria mediática da sociedade. Neste sentido, aliás, não fomos muito mais longe do que um Guy Debord, na Société du Spectacle.

O futuro das humanidades tem sido discutido como uma questão que abrange tanto questões teóricas como questões pragmáticas e institucionais. As ciências sociais também entram nesta discussão e neste cálculo?
A pergunta é muito pertinente. É um truísmo dizer que as ciências sociais e as humanidades, que são diferentes mas ao mesmo tempo têm continuidades e contiguidades, estão permanentemente em crise e sob ameaça, sendo contaminadas pela evolução dos seus próprios objectos.
Mais do que os conteúdos, está em causa a forma; ou se quiser, são as formas que ditam os conteúdos. Por exemplo, fenómenos sociais enormes, como o problema demográfico, o envelhecimento, afectam as humanidades mais do que as próprias ciências sociais porque a diminuição do número de crianças afectará o ensino e o professorado formado nas humanidades. Porém, o carácter propedêutico ligado à própria profissão do ensino é afectado de um modo muito diferente da investigação e da ciência. É bom não esquecer que o ensino existe porque há conhecimento para ensinar e este é produzido pelos investigadores, pelos cientistas, que podem ser ao mesmo tempo professores. Ora, o ensino é ameaçado pelo desaparecimento das crianças, sendo necessário descobrir um autêntico ensino de reciclagem permanente. Os professores de profissão não podem pretender reproduzir-se apenas enquanto tal se os seus objectos físicos, os alunos, desaparecem.

Quanto a essa polaridade investigação/ensino: nos últimos anos, em Portugal, o investimento tem incidido muito mais sobre a investigação do que sobre o ensino universitário.
As universidades e a produção de conhecimento foram marcadíssimas pelo antigo ministro José Mariano Gago. O que ele pretendeu fazer foi mudar a universidade a partir do seu lado mais inovador e mais criativo que é a produção do conhecimento e não a reprodução, isto é, a ciência enquanto investigação e não tanto como transmissão escolar.
A nossa universidade era antiquada porque o lado da reprodução tinha uma dimensão muito maior do que a produção. Isso foi vigorosamente corrigido, para melhor, com um grande desenvolvimento da investigação científica, mas também com algo desagradável e até criticável, talvez inevitável, que foi a crescente imposição dos critérios das ciências exactas às ciências sociais e às humanidades. Mas Mariano Gago fez sempre questão de respeitar o direito dos praticantes das ciências sociais e das humanidades ao financiamento proporcional dos seus campos de pesquisa.
Ainda recentemente, discutimos, na Academia das Ciências, com o presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), a questão da necessidade de ter critérios de avaliação específicos. Não há dúvida de que há, aqui, uma grave questão a resolver, que entre outras coisas tem a ver com a dominação linguística do Inglês.

Mas à medida que a luta pelos recursos se acentuou, as humanidades não perderam terreno, não passaram para segundo plano?
Neste momento, sim. As humanidades e as ciências sociais, em Portugal, faziam parte de um certo estilo francês. Os franceses tiveram um grande sistema de organização da investigação científica que era o CNRS, mas entretanto entrou em crise e parece que o modelo anglo-saxónico se vai impondo aí também. Em contrapartida, há uma continuidade institucional, organizacional e instrumental, e não é de ordem metafísica, entre as humanidades, desde as mais gratuitas, aquilo de que se diz que “não serve para nada”, até às ciências sociais e até às ciências da vida e da natureza. Essa continuidade existe, não é meramente histórica e tem uma base organizacional sólida através das universidades. A ciência mais exacta continua a ser uma prática organizada e continua a ser verdade que os cientistas satisfazem necessidades das humanidades e vice-versa.

Mas haverá alguma maneira de convencer as instâncias financiadoras, estatais ou não, de que as humanidades também são importantes?
Uma coisa que em Portugal tem existido muito pouco e há lugar para que haja mais (isso está discutido no meu artigo sobre vocação e profissionalização publicado nos Inventários do ICS) é a intervenção de determinadas organizações não estatais, mas com vocação para a intervenção pública (por exemplo, a Fundação Calouste Gulbenkian), que poderão vir a ter um papel mais activo no financiamento a determinadas linhas de pesquisa nas ciências sociais e nas humanidades.
Concretamente, faz falta em Portugal no sector público uma distinção crescente entre a investigação promovida pelo Estado e aquela que é determinada exclusivamente pelos interesses dos investigadores. E assim apresentar-se-iam projectos numa área predeterminada pelos organismos de financiamento públicos (e também privados) como relevante, conforme acontece com os projectos europeus, a par do financiamento aos projectos espontâneos vindos das comunidades científicas específicas.

E quem é que diz o que é relevante? Não se coloca aí a questão da autonomia?
Nunca nos vamos livrar dessa questão porque os recursos são finitos por definição. Já discutimos a questão da relevância em público numa sessão organizada com a União Europeia pelo então ministro Mariano Gago, cujo conceito era o de crescimento, no melhor sentido da expressão.

E isso não está a ser posto completamente em causa?
Não é impossível que tenha chegado um movimento de maior selectividade, tanto ao nível da quantidade como da qualidade. Até por causa da escassez de recursos que se verifica em Portugal, mas não só. Devido também às políticas europeias, que têm levado à mudança de formatos de financiamento na UE.
Até recentemente, Portugal contribuía mais para a ciência europeia do que aquilo que ia lá buscar, o que não tem sentido para um país pobre e em crise económica e financeira. Sempre defendi que as ciências sociais e as humanidades têm o dever de devolver à sociedade portuguesa, em língua portuguesa, os resultados dos investimentos que são feitos em nós. Porque fazemos parte daquilo a que eu chamo um “debate nacional”, que aliás até pode ser em parte comunicado e transferido para o Brasil e para a África, o que significa que estamos a falar de um destinatário final considerável.
Nos Estados Unidos, onde as ciências sociais e as humanidades estão organizadas separadamente das ciências, é mais fácil harmonizar os interesses das diversas comunidades científicas do que, afinal, entre nós, onde há menos diferenciação de financiadores e de critérios do que lá fora. No caso das humanidades, os problemas da investigação e do seu financiamento muitas vezes podem e devem ser tratados fora do campo da ciência.

Mas em Portugal a filosofia, a literatura, a arte estão dentro da FCT, ou seja, dentro do campo da ciência.
Mas também é verdade, pelo menos essa é a experiência que tenho, que há uma dificuldade das humanidades em se adaptarem a regras destinadas a responder à lógica da concorrência, que em princípio não é uma coisa má. E Portugal, nos últimos anos, em termos de publicações e de orientação geral pelos critérios internacionais, tem-se adaptado e continua a adaptar-se gradualmente.
Mas é curioso isto: tendo 30% de todos os meus artigos publicados no estrangeiro, reparo que, até na Internet, e fora de Portugal, sou mais citado pelas artigos escritos em português do que por aqueles que foram publicados em inglês. Não foi por ter publicado em inglês e em francês que ganhei tantos leitores como isso. Mas ganhei pontos na avaliação, o que mostra que algo aqui está errado. Aconselharia o presidente da FCT, tal como já o fiz, a criar um conselho superior das ciências sociais e das humanidades equivalente ao das ciências, com o seu funcionamento próprio.
O grande drama de Portugal, que foi enunciado por Fernando Pessoa, foi sempre o mesmo: nós temos uma grande cultura secundária. Temos uma cultura de mil anos, temos tudo o que os outros têm, umas vezes mais, outras vezes menos, mas fomos sempre secundários. E embora o sensacionismo seja tão bom ou melhor do que o futurismo, toda a gente conhece o futurismo e pouca gente conhece o sensacionismo.

Depois desse investimento todo, impulsionado por Mariano Gago, o que se está agora a passar com toda essa gente que andou, ou ainda anda, a fazer investigação?
O que de mais optimista posso dizer é que houve um processo de crescimento e, como em todos os processos de crescimento, há uma fase selectiva, de redefinição dos critérios de selecção. O dinheiro é o equivalente geral, como já dizia o dr. Marx. Evidentemente, quando há mais dinheiro, os critérios são mais lassos, quando há menos dinheiro, os critérios são mais apertados. Os capitais intelectuais que estas pessoas adquiriram permitir-lhes-ão, em relativamente pouco tempo, readaptar-se aos novos critérios que em parte são financeiros e económicos, mas em grande parte são critérios gerais, epocais. Trata-se do crescimento e da complexificação do sistema. Nisto, mantenho-me completamente luhmaniano. Uma das coisas que têm faltado em Portugal é a aplicação, não apenas nas ciências humanas e sociais, também nas ciências exactas. Como se estivéssemos todos a trabalhar para o Prémio Nobel. Mas temos de ser optimistas e possuímos algumas bases para isso.

Ler mais sobre a ciência em tempos de crise no Destaque de hoje no caderno principal do PÚBLICO

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