Marginal interrompida

No Inverno ou no Verão, há sempre gente que aproveita os passeios largos da marginal para caminhar, correr ou andar de bicicleta. Para já, e enquanto o mar estiver bravo, aconselha-se distância.

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Ainda não sabíamos se havia gente ferida, a dimensão exacta dos estragos, se fora um azar momentâneo ou se ela, a onda, trazia companhia e ameaçava mais pessoas. Eu, já farta deste Inverno que se arrasta há demasiado tempo sem um dia de sol digno desse nome, fui para lá. Para ver a onda e os seus efeitos, mas só porque teve de ser.

A marginal marítima do Porto raramente está vazia. No Inverno ou no Verão, há sempre gente que aproveita os passeios largos para caminhar, correr, andar de bicicleta ou deslizar sobre patins. Há velhos e há mães a empurrar carrinhos de bebé, há cães grandes e pequenos que trotam ao lado dos donos. A Avenida de Montevideo transforma-se na Avenida do Brasil e esta desagua na Rua do Coronel Raul Peres, que cede passagem à Avenida de D. Carlos I, antes de a Rua do Passeio Alegre e a Rua das Sobreiras dizerem adeus ao mar e receberem o rio Douro, ou vice-versa. Este ano, a onda de Janeiro (que pôs os carros a boiar como barcos a remos e deixou ferimentos ligeiros em quatro pessoas), associada aos alertas de tempestades, que deixam o mar numa fúria avassaladora, levou a Protecção Civil a cortar, por mais do que uma vez, zonas da marginal. A última, quando escrevo, aconteceu há poucas horas e deixava regras bem claras: nem carros nem pessoas podiam circular entre a Avenida do Brasil e a Avenida de D. Carlos I.

Desta vez, senti os efeitos do alerta vermelho em casa. Na televisão, os directos de repórteres mais ou menos encharcados e enregelados vão dando conta do avanço do mar, do vento que se aproxima, da chuva que cai em bátegas fortes, de vez em quando. E, nas imediações, apesar de tudo, apesar do tempo horrível que pede um tecto sobre a cabeça e um canto quente no sofá, parece haver sempre gente que foi ver o espectáculo. Pessoas que até reclamam, porque não as deixam chegar mais perto do paredão, para poder ver “o espectáculo”. Serão, talvez, as mesmas que quase abalroavam as fitas que a Protecção Civil colocara na Avenida de D. Carlos I, para impedir a passagem, naquela tarde de Janeiro, em que a onda que ninguém esperava arrastara carros e pessoas.

Nesse final de tarde, com a chuva a molhar as páginas do bloco de apontamentos, eu perguntava a algumas dessas pessoas se não tinham medo de ali estar, enquanto ao lado, o Restaurante Shis se desmoronava sob a força do mar. E eles diziam-me que não, que ali se sentiam seguros. Que ali nada os atingiria.

Há dias, encontrei uma colega fotojornalista que foi arrastada pela onda de Janeiro. Ela estava ali a trabalhar, conhecia bem a zona, já ali fizera fotografias do mar avassalador e gigante, a desfazer-se numa fúria bela, contra o farol do velho molhe do Douro, dezenas de vezes. Confessou-me a impotência do momento em que se viu atirada ao chão. E uma sensação que ainda estava a tentar digerir. É que ali – disse-me – ela sentia-se segura. Tinha a certeza de que o mar, se chegasse a terra, poderia, quando muito, molhar-lhe os pés. Agora, não sabia muito bem o que fazer com o que lhe acontecera.

Penso nas pessoas que se queixam de não as deixarem aproximar-se mais da fúria do mar e não percebo. Ouço os que dizem que sabem que não deviam estar ali, mas que queriam mesmo tirar uma fotografia e também não percebo. A marginal foi interrompida. O vento agigantou-se mais do que o mar e – ouço um responsável explicar na televisão – fez com que as ondas rebentassem lá mais ao largo, protegendo a terra. Há-de haver quem o lamente. Eu fico contente por não ter de estar ali, entregue à chuva e ao vento que parece querer rebentar com o vidro das janelas. E quando o mar se acalmar e a marginal estiver inundada de sol, hei-de ir fazer companhia aos caminhantes, aos ciclistas, aos cães e às mães com carrinhos de bebé. Só é preciso esperar que ela já não esteja interrompida.

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