O caminho para o descaramento

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Fervoroso apóstolo da Religião da Missa Liberal no século XXI, Carlos Moedas conseguiu o seu púlpito mais feliz em Maio de 2014. Em Conselho de Ministros, exprimindo-se num extraordinário falsete de sacristão, deu graças e tentou convencer os fiéis de que valera a pena rebentar com a vida da maior parte dos portugueses sem, com isso, melhorar as contas públicas, antes pelo contrário. Pois também o Senhor mandou um Dilúvio para castigar os homens e só um pediu dinheiro para fazer uma arca. Todos os compatriotas morreram, bem feita para eles, mas Noé ficou, embora ainda hoje esteja a pagar a arca. É o que se chama “um sucesso do ajustamento”, oremos irmãos.

Os estudiosos da Bíblia Passista investigaram se este Carlos Moedas poderia ser o mesmo cónego que anunciara ao mundo, três anos antes, em comentário de blogue, o ferro e o fogo sobre a sodoma e gomorra da dívida socialista: “Alguém acredita que estes cenários são possíveis no curto ou mesmo no médio prazo? Eu tenho muitas dúvidas e por isso só nos resta (a nós e a outros) o possível caminho da reestruturação da dívida. Ou seja, ir falar com os nossos credores e dizer-lhes que dos 100 que nos emprestaram já só vão receber 70 ou 80.” 

Palavra da Salvação e graças a Deus? É hoje evidente que se trata de um texto apócrifo, sem qualquer valor, quase ao nível dos falsos manuscritos do Mar Morto que compuseram o programa eleitoral do PSD e CDS nas últimas legislativas.

Portanto, não confundir o Moedas com o Moedas. O Moedas que interessa é o do FMI, da sra. Merkel e dos seus ex-patrões da Goldman Sachs e Lehman Brothers, Agiotas Imobiliários e Vendilhões do Templo Lda., que sabem ressuscitar miraculosamente no meio da ruína dos Estados sociais. Estes têm por Moedas um fervor celestial, correspondido pelo anjinho loiro. O homem que nos interessa é aquele que, ainda jovem, chegou a secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro porque acertou no seu próprio nome desde a pia do baptismo. 

Porque sendo Moedas engenheiro civil formado pelo Instituto Superior Técnico, sósia diplomado pela Academia de Hollywood na personagem de “Peter Sellers em Dr. Strangelove/Estranho Amor”, a sua especialidade maior são realmente as moedas. Aquilo que Carlos Manuel Félix Moedas (Beja, 10 de Agosto de 1970… alô, Alentejo…?, deves ter levado poucos calduços em pequeno, deves) recebeu em abundância do céu, escorrendo leite e mel, é o talento para engenharias financeiras.

Conhecidos teóricos monetaristas já se debruçam sobre variantes de estudos clássicos derivados deste tema tóxico. Por exemplo, a tese “O Papel da Moeda nas Teorias do Desenvolvimento Desigual” já tem a sequela “O Papel do Moedas no Desenvolvimento Desigual dos Povos.”

E mesmo economistas com o prestígio ao nível da posta de pescada, como o prof. Aníbal Cavaco Silva, e foi uma pena, lamenta-se na Harvard School of Business, que este santo nunca tenha governado um país para implementar a sua implementação, trabalham no duro no derivado da Lei de Gresham: “O mau Moedas tende a expulsar do mercado o bom Moedas”.

Mas também este versículo está errado. Ele é só um, a outra face da mesma… mas chega de trocadilhos, daqui a pouco já pagam multa. Carlos Moedas pode ter-se enganado nas contas mas não mudará a sua epístola: ele vive num permanente “ímpeto reformista” que “não vai parar”, como aliás já ameaçara no Velho Testamento o profeta Isaías (55, 1): “Vinde, todos vós que estais com sede, vinde às águas; e vós que não possuís dinheiro algum, vinde, comprai e comei! Vinde, comprai vinho e leite sem dinheiro e sem custo!”

Perdão, não era nada disto. 

“Que o empregado abandone o seu trabalho e o reformado a sua pensão de alimentos. Volte-se ele para os Mercados, que terão misericórdia dele; volte-se para o Fisco, pois ele perdoará de bom grado, depois de o arruinar com outro aumento enorme dos impostos.” Era mais isto, as nossas desculpas ao profeta.

A propósito, alguns profetas da desgraça e outros ímpios que um dia conhecerão a Ira Divina têm questionado a aparente contradição de um Governo ultraliberal ser, afinal, o mais controlador, estatista e chupista dos rendimentos da extinta classe média, pelo menos desde que há registos meteorológicos. Isso é não compreender o essencial. O importante é que nesta doutrina vale tudo, o que é certo e o seu contrário, desde que os Mercados fiquem a ganhar. Não esquecer que um dos mestres de Carlos Moedas, António Borges, assegurou na televisão em directo que os produtos financeiros da Goldman Sachs não eram tóxicos, mas uma criação “muito interessante” e, quando a bolha especulativa rebentou de vez, em 2008, jurou que a crise americana nunca chegaria à Europa. E nós vimos e comemos isto em Portugal com estes olho por olho e dente por dente que a terra há-de comer.

O museu favorito de Carlos Moedas é o do Criacionismo. Fica na América e ensina que Deus criou o mundo em sete dias, os dinossauros andavam cá há seis mil anos e chegaram a ser montados por cavaleiros humanos. Tem o boneco de um dinossauro como prova. É um museu de grande rigor histórico, ao nível da avaliação aos três anos da saída limpa da troika (juros pagos aos credores de 28.528 milhões de euros, maior do que o corte da despesa pública mais aumento de impostos juntos: 28.247 milhões*). 

O filme favorito de Moedas é um épico sobre o acima mencionado Noé e a Arca, embora contenha erros e omissões históricas imperdoáveis. Na verdade, todos os casais de bichos salvos no Dilúvio obtiveram o bilhete com a ajuda de Miguel Relvas, que facilitou o negócio. Mas toda a oposição despesista vai, mais uma vez, negar a evidência.

* Dados capilares de Santana Castilho, colunista do PÚBLICO

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