O Chiado noutros carnavais

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O Carnaval acabou. São só três dias, já sabemos. Vemos as imagens na televisão, reportagens por todo o país. Carnavais mais sambados, com plumas e brilhantes, e outros mais tradicionais, como o dos Caretos em Trás-os-Montes. Mas não vi imagens do Carnaval no Chiado. E, no entanto, foi no passado um Carnaval de referência, como conta Mário Costa em O Chiado Pitoresco e Elegante. Já quando o livro foi escrito, nos anos 1960, este Carnaval era apenas uma memória: “O espectáculo vivido nas distanciadas tardes de Domingo e Terça-Feira Gorda, só muito veladamente pode ser vislumbrado hoje, pela leitura das antigas crónicas dos jornais e pela reportagem gráfica das revistas ilustradas de antanho.”

Pela descrição de Mário Costa, as coisas passavam-se assim — havia “combates” e “nem sempre inofensivos”, com tremoços secos, ovos e pastéis de nata a voar pelo ar e, aqui e ali, a aterrar nas cabeças dos foliões. E também pós de sapato, pós de goma e saquinhos de bombons. Era bom conseguir um lugar privilegiado, numa das varandas sobre o Chiado — “das janelas do [clube nocturno] Turf e do Tauromáquico, como do simpático balcão de que desfrutava o jornal Novidades”, de onde se podiam arremessar “quilos de projécteis, secos e molhados de toda a espécie”.

Havia cegadas e paródias, farsas burlescas que se julga terem origem nos autos medievais e havia as Danças da Luta, das Espadas, da Bica e a Dança dos Machetins. Vejo depois no blogue Com Jeito e Arte imagens do que seriam essas danças acrobáticas: homens subindo duas escadas paralelas que são seguradas por outros no chão, coroas de flores nas cabeças, o princípio do que parece ser uma pirâmide humana, mas a legenda descreve apenas, sem mais explicações, “Dança de Luta durante desfile carnavalesco, 1906”. Outra imagem, retirada da revista Ilustração Portuguesa e identificada como sendo de 1905, mostra uma Dança da Bica, essa com uma pirâmide humana já constituída e pessoas vestidas com trajes que, por entre saias bordadas, capas e capacetes, parecem de guerreiros mongóis. Neste tipo de dança, “o grupo era composto por vários homens altos e fortes, fazendo uns de homens e outros de mulheres”, usando os primeiros barbas e arcos adornados com flores de papel, e os segundos lenços brancos.

E não se pense que a nobreza ficava distante de tudo isto. Conta o blogue que “os reis D. Pedro II e D. João V mascararam-se de frades e mendigos em alguns Entrudos”, enquanto as rainhas D. Francisca de Sabóia, D. Sofia de Neubourg e D. Mariana de Áustria introduziram na corte os bailes de máscaras”. Só em 1823 é que se realizou, no Teatro do Bairro Alto, o primeiro baile de máscaras público, para o povo — mas consta que terá acabado em confrontos. Mais requintado foi certamente o baile organizado no Teatro de São Carlos, em 1836, no qual “as máscaras, sob a influência de Veneza e de Paris — Dominó, Columbina, Arlequim, Polichinelo, Pierrot — fazem do Carnaval uma festa d’Arte”.

Mário Costa fala também das cegadas e das danças, e dos “pitorescos batalhões da Ajuda, de Alfama e de Campo de Ourique”, e refere a grande novidade do ano de 1886: “Uma interessante e alegre espera de gado, sendo os toiros e as chocas, burros e burras, que iam ‘na ponta da unha’, e que, por pouco, não se tresmalhavam, pela vozearia do povo, que enchia os passeios, e pelo arremessar de ‘cocottes’ e até de tangerinas, das janelas do Hotel Universal”.

Figura marcante desses Carnavais, pelo menos a partir de meados do século XIX, era, segundo o Com Jeito e Arte, o Xé-xé, sátira à Lisboa do século XVIII e à antiga nobreza portuguesa, ridicularizada na sua “casaca comprida, com punhos de renda, culottes, sapatos de fivela e cabeleira de estopa”, para além do chapéu bicórneo e do bastão. As imagens no blogue, retiradas do Arquivo Municipal de Lisboa, mostram esta espécie de clown a passar nas ruas (uma delas é captada na Avenida da Liberdade, a outra na Praça D. Pedro IV), com os seus folhos, meias brancas e casaca, ao lado dos populares divertidos ou simplesmente curiosos.

O cronista Casimiro Dantas, citado em O Chiado Pitoresco e Elegante, recorda com saudade essa “quadra do tremoço e da bisnaga, quando o Carnaval tinha a graça genuinamente portuguesa dos nossos avós, uns bons velhos patuscos e sadios, exuberantes de vida e de humorismo”.

Segundo o referido blogue, a partir de 1910, com a implantação da República, “o velho Carnaval passou a ser considerado bárbaro e de mau gosto”. Mas foi com o Estado Novo que as coisas mudaram e “o Carnaval, com toda a sua folia, perdeu, definitivamente, o lugar cimeiro das festividades lisboetas, passando a ser celebrado com simples desfiles pela Avenida da Liberdade, os quais mostravam as tradições folclóricas de cada região do país e das possessões ultramarinas”.

Mário Costa situa, por seu lado, o declínio um pouco mais atrás. “Terá sido em 1856 que um edital do Governador Civil de Lisboa veio proibir o arremesso, nas ruas e das janelas, de laranjas, ovos, pós, água e estalos”, tal como o uso de “máscaras e trajos ofensivos da religião, da moral e dos bons costumes”. E, sem tais práticas, inevitavelmente, “o entusiasmo foi-se” e “a ‘graça’ baixou de cotação”.

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