O quarentão enigmático

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A certidão de nascimento é inequívoca (n. 25 de Abril de 1974, de norte a sul do país) e os seus anos de crescimento estão documentados por todo o lado, mas é uma das personagens mais esquivas e enigmáticas da história de Portugal. Quase todos têm uma opinião sobre ele, o que fez e não fez e deixou de fazer, etc. Mas descrever a sua verdadeira personalidade, ou lembrar-lhe sequer a cara, é hoje como ler um romance de mistério, de fugas e sombras.

Algumas teorias da conspiração garantem que não passa de mais uma lenda histórica (um D. Fuas Roupinho e o veado no precipício, um galo de Barcelos que canta já assado no prato) e que, 40 anos depois de vir ao mundo em Portugal, o Sr. 25 de Abril não existiu.

Mas assim se fazem grandes figuras das revoluções (ou contra elas). Mas como é o nosso biografado?

I — É um radical que acreditou em fantasias como igualdade, solidariedade, oportunidades de educação, justiça e saúde para todos. É um tolo, um ingénuo, um sonhador que agora está nas lonas.

Mas não são os sonhadores que arriscam e mudam as coisas más?

II — É um aldrabão, um mentiroso compulsivo que nunca gostou realmente do seu berço — a liberdade, a alegria do povo na rua, o Estado social que protege velhos e desfavorecidos — e vê virtudes no Estado Novo. Enfiou-se na política só para ficar rico e tem amigos que são os mais reles criminosos de colarinho branco. Adora pavonear-se no poder, o povo que se lixe e as eleições também (era o que dizia o outro, agora que há eleições já não diz) e restabelecer a velha ordem das negociatas e favores financeiros, mercados especulativos internacionais e privilégios dos ricos. Está hoje mais rico do que estava no dia da revolução, curiosamente.

É difícil, como se vê, manter o sangue-frio quando se trata da personalidade contraditória do Sr. 25 de Abril. Pelo menos ao chegarmos, uma vez mais, ao estado a que isto chegou — citando um dos seus pais, o falecido capitão Salgueiro Maia.

Um estado de medidas temporárias mas definitivas, irrevogáveis mas passageiras, mentirosas mas verdadeiras. Nestes anos recentes de palavras tão concretas e nebulosas: ajustamento, desoneração, controlo orçamental, indexação demográfica e rácio do PIB e o rating e o diabo a sete por cento. E quando se arrasta no poder um Governo que não sabe falar ou pensar em mais porra nenhuma.

Todos os presidentes da República (menos o senhor que lá está agora, que não pode sair à rua por falta de dinheiro para as despesas) tiveram encontros esporádicos com o Sr. 25 de Abril — versão I — nos últimos anos. Estão muito tristes e baralhados com o que aconteceu. Andou um homem a criar um filho para isto!...

Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio ainda se lembram do dia em que ele recebeu, pela primeira vez, o salário mínimo, e como isso mudou as coisas. Por exemplo, deixou de comer só pão e batatas amolgadas num púcaro, como os pais dele. E pôde ser tratado a um cancro na fase inicial, sem ter de ir a Londres, sem dinheiro. Viveu surpresas como aprender a ler, continuar os estudos, tirar um curso, casar-se, mudar para um emprego melhor com horário de trabalho e subsídios de férias, ter dois filhos, comprar sapatos e roupa, etc. Um dia convenceram-no a comprar casa e carro e electrodomésticos a crédito e a ter férias. Em resumo, meteu na cabeça que era da “classe média europeia”. Um dos ex-presidentes escreveu no seu diário:

“Vi o Sr. 25 de Abril há dias na estrada nacional, a empurrar a cadeira de rodas da filha. Desistiu de fazer o transplante do rim, os medicamentos são caros. Perdeu a casa e o carro para o banco. À mãe dele tiraram-lhe a pensão de sobrevivência, não o pode ajudar. O miúdo mais novo come na escola nas férias e no banco alimentar o resto do ano. Em resumo, está um bocado aborrecido e tem os dentes podres. Aos 40 anos parece um velho!”

O primeiro-ministro Passos Coelho, o vice-primeiro-ministro Paulo Portas, o Presidente da República, o roedor de cordas Durão Barroso e aquela flauta desafinada que preside à Assembleia da República, Assunção Esteves, encontraram há dias o Sr. 25 de Abril — o II. Um deles, não interessa qual, tanto faz, anotou na agendazinha antidéfice:

“O nosso Dr. 25 do A. é um empreendedor. Nem nos lembra o bebé que fugiu para o Brasil em 1975. Tem apartamento de luxo no empreendimento da António Maria Cardoso (tiraram de lá a placa com o nome dos mortos pela PIDE no dia do golpe, mas é uma medida ‘temporária’, ih, ih…) com as mais-valias da mansão da Praia da Coelha, ao lado do Dias Coelho, do Oliveira e Costa e do Cavaco, que estava a dar muito bandeira. Um negócio ‘facilitado’ pelo Relvas. Vai dar uma ‘ajudinha’ nas contas da campanha. Diz que vai mudar o sentido de voto dos portugueses. Também mudou a porcelana dos dentes. Até lhe disse: ‘Ó homem, está cada vez mais novo!’”

Última hora: o Sr. 25 de Abril afinal emigrou. Vai viver fora o 25 de Abril, sempre.

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