Os domingos da nossa infância

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Que me desculpem os que esperavam aqui uma sugestão de um sítio para visitar em Lisboa, um texto sobre a história de um palácio ou de uma igreja. Esta não é tanto uma viagem no espaço, é mais uma viagem no tempo a uma casinha sem história na Rua do Noronha, junto da Escola Politécnica.

Era a casa da minha madrinha, irmã da minha avó, e era aí que a família se reunia aos domingos à tarde para lanchar. Almoçávamos muitas vezes ali perto, no restaurante Os Balões, onde aos domingos havia arroz de pato — mais tarde, quando Lisboa começou a ficar mais moderna, os meus avós levavam-me por vezes a comer um hambúrguer ao The Great American Disaster, mas secretamente eu preferia o arroz de pato dos Balões.

Seguíamos depois para casa da madrinha. O prédio parecia pequeno, mas lá dentro a casa era grande, tinha um corredor muito comprido e, distribuídos ao longo dele, muitos quartos pequenos. Mas o que a casa tinha de especial era um terraço que — pelo menos é assim que me lembro dele — pairava sobre a cidade. 

Era um terraço mágico, com os vasos de sardinheiras alinhados a toda a volta. Nos dias quentes, abríamos a porta da cozinha e íamos brincar lá para fora e cortar as folhas das plantas em pedaços pequenos para fazer almocinhos que servíamos nos pratos miniatura. Quando chovia, eu ficava a olhar através do vidro e a ver a chuva a cair no pátio suspenso sobre a cidade.

Lanchávamos na assoalhada virada para a Rua do Noronha, em volta de uma mesa redonda, pequena, de camilha, com aquecimento no meio (quando estava muito frio, puxávamos a camilha para cima das pernas para apanhar o calor). As chávenas de chá e os pratos de sandes e bolos enchiam a mesa até não caber nem um alfinete. A minha avó trazia tartes de maçã que comprava numa pastelaria ao pé de casa dela. E antes do lanche passávamos muito tempo a pôr fiambre dentro de pães-de-leite e a arrumar os bolos nos pratos. 

A madrinha gostava especialmente dos suspiros, enormes, brancos, nuvens de açúcar solidificadas. E punha quatro ou cinco colheres em cada chávena de chá. Passavam desenhos animados na televisão — Vickie, o Viking, mais tarde a Heidi —, mas os adultos falavam alto e eu não se conseguia ouvir bem. 

A seguir ao lanche tinha explicações de Inglês com a minha tia Fernanda, na “salinha da costura”, onde, na verdade, nunca vi ninguém costurar. 

Nas tardes de domingo, Lisboa era sempre uma cidade adormecida. Mais tarde descobri que o meu pai também tinha uma relação especial com aquela casa, que foi da avó dele, e sobre a qual escreveu: “Quando os meus pais iam para férias, eu ia para casa da minha avó materna. E gostava. Era na Rua do Noronha, e durante a noite ouvia-se o ruído das máquinas nas instalações da Imprensa Nacional. Isso dava-me a estranha sensação de que um mundo de decisões, leis, decretos, nomeações e demissões se construía junto a mim, agarrado ao meu sono, já quase encostado às paredes de um pesadelo. Por trás da casa havia um terraço com sardinheiras que eu tentava educar, fazendo-lhes perguntas tolas a que elas não respondiam (não me lembro de nenhuma que me tivesse dirigido a palavra), e batendo-lhes com uma régua (não chegava a ser uma daquelas palmatórias dos antigos professores de instrução primária). Mas havia também os telhados que me ficavam acessíveis e que eu gostava de percorrer — em particular o telhado de uma olaria, que tinha um proprietário mal-encarado, que resolveu fazer queixa a minha avó, dizendo que eu partia as telhas.”

E assim descobri que o meu pai massacrara, muitos anos antes, as mesmas pobres sardinheiras. Ao lado havia um prédio bonito, de azulejos, com o que eu imaginava ser um belo jardim, cujas árvores tombavam sempre alguns ramos com flores para a Rua do Noronha. Comparado com ele, o prédio da madrinha era modesto. 

A olaria de que o meu pai fala desapareceu há muito, e nem eu própria me lembro de a ver. Hoje há uma loja de ferramentas. Já passei pela porta, mas não tive coragem de tocar e de pedir para ir ver o terraço. Provavelmente é apenas uma laje de cimento, e as sardinheiras morreram. 

 No Google Maps podemos ver a fachada, mas quando clicamos para espreitar a casa de cima somos projectados para o céu, e só vemos nuvens brancas. E está certo. É assim que deve ser com as casas da nossa infância. 

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