Ou charneira ou chaleira

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Filósofo político nascido em Amarante a 8 de Janeiro de 1965, com um estágio prático tirado em 2003 junto dos militantes socialistas de Felgueiras (que incluiu mestrado em caixotes do lixo despejados na cabeça, murros e calão popular), Francisco José Pereira de Assis Miranda é um homem que se irrita com os atrasos eleitorais do PS, que dão tempo para um homem deixar crescer a barba. Mas depois de o escolherem a ele, tudo bem, afinal não se queimaram nomes na praça pública e o Seguro sabe o que está a fazer.

O cabeça de lista do PS às eleições europeias de 2013 acredita no “tempo adequado” para se fazer política. Consequência de dominar, em simultâneo, elevados conhecimentos sobre a grande História mundial e experiências da mais rasteira historiazinha do Partido Socialista. O homem do Rato que gosta de começar artigos com inédita profundidade — “Em 1871, Benjamin Disraeli, pouco antes de se alcandorar ao lugar de primeiro-ministro britânico, instado a pronunciar-se sobre a guerra franco-prussiana, pronunciou as seguintes palavras” e daí a pouco já temos Henri Kissinger, “que analisou a questão na qualidade de grande historiador das relações internacionais”, com Assis imune à comichão que elogios destes ao conselheiro de Nixon fazem nos sectores mais à esquerda, dicotomias que aliás pouco lhe interessam, acaba a falar do Império de Carlos V e do “talento político de dois conservadores excepcionais, Adenauer e De Gaulle” e depois admira-se que tanta gente que detesta Passos Coelho se enerve também com ele.

Apesar de tudo, não foi a sua palavrosa fluidez que o fez famoso, mas a maneira como enfrentou, em 2003, vândalos do PS de Felgueiras, quando o então líder da secção distrital socialista do Porto criticou a fuga da autarca Fátima Felgueiras para o Brasil, acusada de corrupção, e julgou que “num estado de direito democrático” essas coisas se explicam ao vivo.

Voltou dez anos mais tarde, “sem ressentimentos”, sem murros nem insultos ou escolta da GNR, mostrando que se sente preparado para outras batalhas. 

Sim, acredita que um dia será secretário-geral do PS e primeiro-ministro de Portugal, dêem-lhe o “tempo adequado” e o carisma fará o resto.

O problema é que cai em mal-entendidos, para não dizer distorções malévolas. Uma vez criticou o controlo “populista” das despesas dos deputados, disse que se andasse de Clio “seria a mesma coisa” e logo um colega socialista foi espalhar que ele se queixara de que o queriam obrigar a deslocar-se num Renault de baixa cilindrada.

Militante socialista desde 1985, licenciado em Filosofia, Assis recusa “fulanizar a discussão política em detrimento da análise da substância”. E assim (só fulanizando um pouco…) nos descreve a evolução da cúpula do seu próprio partido: no período pós-revolucionário de 1974 e 1975, escreveu Assis no PÚBLICO, “Mário Soares agiu com um discernimento excepcional alicerçado em duas orientações fundamentais: uma incorruptível fidelidade aos princípios fundamentais ínsitos [ínsitos! Dá-lhe, Assis!] a uma visão republicana, democrática, liberal e socialista da organização da sociedade e um permanente pragmatismo inteligente na abordagem dos acontecimentos concretos, de modo a assegurar a prevalência dos equilíbrios a que as circunstâncias aconselhavam (…) Nessa época o PS funcionou claramente como um  partido charneira, impedindo a instauração de uma ditadura de orientação comunista, impossibilitando a consumação de uma ilegítima tutela militar e obstando ao sucesso de qualquer  projecto restauracionista fomentado pela extrema-direita. Para atingir tal objectivo, Mário Soares usou de uma imaginação táctica prodigiosa que”… etc., etc., etc.

Sobre António José Seguro, 40 anos depois, sucessor de Soares, não fica atrás nos elogios… Em 2011, em entrevista a este jornal durante a eleição para secretário-geral, Assis sintetizava as imaginativas qualidades estratégicas do seu rival (Seguro obteve 68%, Assis 32%). Destacava-se o ínsito valor político de Seguro, que permanece actual: “Homem extraordinariamente afável, bem formado, com um longo percurso na JS, no PS sempre pronto para participar na vida partidária, nos últimos seis anos não teve funções de especial responsabilidade no Partido Socialista, o que o libertou bastante, lhe permitiu andar pelo país e nisso há um mérito, não é um demérito, eu nunca digo isto num sentido negativo [‘tá bem, abelha… dá-lhe, Assis!], ele esteve ao serviço do PS e ajudou muitas pessoas em muitos sítios, na medida em que a sua presença era desejada e ele ajudava”… etc., etc., etc.

Existe portanto, de um lado, um Assis — o teórico convencido de que o PS deve ser um partido “charneira” em Portugal.
“Charneira” no dicionário: ajustamento de duas peças de madeira ou metal encravadas uma na outra, de maneira que uma delas, pelo menos, possa girar. No sentido figurado, uma pessoa ou coisa que serve à união de dois grupos ou mundos diferentes. 

E vive do outro lado o Francisco — o político pragmático que desce às ruas e enfrenta a chaleira dos populismos.

“Chaleira” no dicionário: instrumento culinário que, ao contrário do que o nome parece indicar, não foi idealizada para nela se fazer chá, mas apenas para aquecer água ao ponto de ebulição. Umas vezes um homem acaba em eleição, outras em escaldão.

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