Para lá das fachadas

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A Rua de Cedofeita é uma resistente. Por mais do que uma vez foi anunciada a sua morte, mas ela lá continua, com mais uma mazela ou outra, mas sem desistir. Espaço comercial por excelência, viu partirem lojas e chegarem outras, menos apetecíveis e que não atraíam tanta gente. Ir a Cedofeita deixou de ser obrigatório, mas isso foi antes de voltar a ser obrigatório passar por lá. Novos espaços comerciais surgiram, juntando-se aos resistentes de décadas. Chegaram moradores novos e novas iniciativas para animar quem por lá passa. Ainda há muito por fazer, mas Cedofeita continua viva. De portas abertas. E a esconder segredos atrás de portas fechadas.

Quando, em miúda, apanhava o autocarro para “ir ao Porto” o mais provável é que o passeio começasse na Rua de Cedofeita, percorrendo depois as descidas e subidas da cidade que haveriam de me levar à Rua de Santa Catarina. Em Cedofeita parava-se para tomar o pequeno-almoço, compravam-se sapatos, espreitávamos a loja dos indianos, comprávamos algum retalho de tecido. Na época de saldos, a rua tornava-se pequena para os curiosos e era um bom prelúdio para o caos em que se tornava Santa Catarina. Não ir a Cedofeita era uma chatice. Encurtava o passeio, deixava de fora da manhã de compras lojas que não havia em mais lado nenhum (ou, pelo menos, assim me parecia).

Depois, a rua entrou, como se costuma dizer, em declínio. Muitas lojas fecharam. Algumas montras permaneceram vazias, outras foram substituídas por produtos mais baratos, chegou a pensar-se que Cedofeita iria tornar-se no “outlet” a céu aberto da cidade. E também se falou na hipótese de a rua deixar de ser a céu tão aberto. Foi feito um projecto para cobrir Cedofeita. A ideia, nascida ainda no tempo da presidência do socialista Fernando Gomes, foi retomada em 2007 e chegou a animar alguns debates portuenses, mas a estrutura idealizada pelo arquitecto Germano de Castro Pinheiro, em metal e vidro, nunca foi consensual nem saiu do papel.

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Com uma parte pedonal, produtos originais a olhar-nos, de novo, das montras, e prédios reabilitados, Cedofeita pode rir-se de quem anunciou o seu fim

Mesmo à chuva, ainda que em menor quantidade, os portuenses continuaram a ir a Cedofeita. A chegada das galerias de arte de Miguel Bombarda, já ali ao virar da esquina, voltou a animar a velha rua, aberta em 1762 e baptizada então com o nome de Rua da Estrada — por ali passava o Caminho de Santiago e nela, durante algum tempo, funcionou o quartel-general de D. Pedro, durante o Cerco do Porto (1832-33). Com uma parte pedonal, produtos originais a olhar-nos, de novo, das montras, e prédios reabilitados, Cedofeita pode rir-se de quem anunciou o seu fim.

Hoje a rua parece oscilar entre uma certa decadência e um Porto rejuvenescido, feito de novos comércios e negócios, capaz de atrair cada vez mais turistas e ainda a torcer os dedos para que mais habitantes cheguem em força. Gosto de percorrer a rua e apanhar, por acaso, a inauguração de uma nova loja, de voltar a velhos espaços conhecidos e, sobretudo, de imaginar o que se passa por trás das fachadas. Para lá do comércio. O que se passa nas vidas de quem vive em Cedofeita.

Porque, muitas vezes, limitamo-nos a olhar para os prédios ao nível do rés-do-chão, para as montras das lojas e cafés, e esquecemo-nos que por cima desses espaços comerciais ou na porta ao lado vive gente. E nem conseguimos sequer imaginar o que está para lá dessas portas.

Há uns anos, caiu-me no colo um conflito entre vizinhos, na Rua de Cedofeita. O problema é que um deles não limpava o quintal há meses e o matagal ameaçava a casa ao lado. Temiam-se as consequências de algum incêndio acidental. Um quintal em Cedofeita? Aquilo intrigou-me e parti curiosa para a morada indicada. Ainda mais estranho me pareceu tudo quando o morador que me aguardava me guiou, escada acima, até ao suposto quintal. Subimos um lanço de escada, depois outro. As casas estreitas e compridas de Cedofeita abriam-se, pela primeira vez, para mim. E, lá em cima, ao nível do terceiro piso, estava o quintal. Um quintal com um limoeiro e ervas, flores e arbustos. As casas de Cedofeita escondem pátios e quintais suspensos.

Desde esse dia, que a rua nunca mais foi a mesma para mim. Deixou de ser, definitivamente, mais uma rua de comércio, para ser um local de maravilhosos sítios escondidos. E quando, à distância, vejo brilhar as clarabóias ou lanternas das casas de Cedofeita, algumas a ser renovadas, sem que, quem passa lá em baixo, na rua, se aperceba disso, fico sossegada. Uma rua com ainda tantos segredos por desvendar há-de viver enquanto eles durarem.     

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