Quando a manteiga se vendia a peso

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Eram onze horas da manhã e já estávamos à porta da Manteigaria Silva, na Baixa, a comer presunto e a beber vinho tinto, enquanto molhávamos pedacinhos de pão em azeite. Do interior da manteigaria chegavam cheiros fortes: dos presuntos pendurados no tecto sobre o balcão, do queijo da Serra a curar numa divisão lá atrás, do bacalhau arrumado nas prateleiras de pedra da Bacalhoaria Silva, a porta ao lado e, na verdade, a mesma loja.

Esta é uma das lojas centenárias de Lisboa, e a única em actividade que se mantém com o maravilhoso nome de manteigaria, em memória desses tempos em que se comprava a manteiga a peso, 50 gramas, 200 gramas, o que fosse necessário, e ela vinha embrulhada em papel manteigueiro.

Eu que cresci na Rua de Entrecampos ainda me lembro da mercearia por baixo da minha porta, com o cheiro a azeitonas e perus pendurados, e dos pacotes de cartão pardo onde trazíamos as compras. Mas não me lembro de uma manteigaria. A minha memória é outra: abriu, a certa altura, a meio da rua, uma então muito moderna loja da Ucal e era aí que íamos muitas vezes comprar o leite e a manteiga.

Mas estamos aqui — numa visita gastronómica organizada pela Taste of Lisboa Food Tours e que começa exactamente por este local — para contar a história da Manteigaria Silva, que não soube apenas sobreviver, soube renovar-se sem perder a identidade, nem a qualidade, de tal forma que acaba de inaugurar um espaço no renovado Mercado da Ribeira.

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Manteigaria Silva: Rua Dom Antão de Almada n.º 1 Telf: 21 342 4905 e Mercado da Ribeira; Taste of Lisboa Food Tours: Filipa Valente, Telf: 915601908 www.tasteoflisboa.com

Aqui, onde petiscamos, na Rua Dom Antão de Almada, a dois passos da Igreja de São Domingos e da Praça da Figueira, o dono, José Branco, vem receber-nos e ver se está tudo bem com o presunto finamente fatiado pela linda máquina vermelha, uma Berkel de 1923, que faz o orgulho da casa. Passado uns minutos, volta para nos convidar a ver os queijos da Serra a curar.

Amarelos, reluzentes, os queijos descansam sobre uma tábua, símbolo de uma vitória da Manteigaria contra as legislações cegas que queriam obrigá-la a abandonar a madeira, substituindo-a por aço inoxidável. Mas esta é uma casa onde se sabe como se faz e porque é que se faz assim. São já muitos anos os que José Branco e agora os filhos, José e Laura, levam aqui a trabalhar para que lhes venham dizer que não é assim que deve ser feito.

José Sénior segura, orgulhoso, a pesada tábua com os queijos e desabafa: “Isto é uma paixão, mas dá muito trabalho.” Alguns têm curas muito longas, o que faz de um Serra algo de completamente diferente do queijo amanteigado a que estamos habituados (para se perceber as diferenças, a Manteigaria do Mercado da Ribeira está a organizar provas verticais para queijos com curas de quatro meses, oito, um ano e 40 meses).

No início — e estamos a falar ainda do século XIX —, o que existia neste local era um matadouro de gado caprino, que veio a ser o talho abastecedor da Praça da Figueira, nos tempos em que nesta existia ainda o belo mercado em ferro. Depois, o talho transformou-se em manteigaria, onde, para além da manteiga se vendiam outros produtos. Dando um salto no tempo, vamos encontrar José Branco a fornecer bacalhau à casa Silva. E, mais tarde, já no final dos anos 80, a tomar a decisão de comprar a loja para continuar o negócio.

Nas paredes há fotos antigas, a preto e branco, que mostram a casa cheia até ao tecto (como continua hoje) de produtos, dos presuntos aos quiabos, das frutas secas às conservas, dos doces aos queijos, para não falar das caras de bacalhau, que fascinam os turistas, e dos vários feijões, da mandioca, os enchidos, os vinhos, os licores.

Uma das fotos mostra a corrida ao bacalhau, no ano de 1977, quando, por altura do Natal, houve falta em Portugal, e os clientes corriam à Manteigaria, empurrando-se à porta, na esperança de conseguir pelo menos uma posta.

Das mais de 20 manteigarias que existiam em Lisboa, resta hoje apenas esta: a Manteigaria Silva. É, tal como a Conserveira de Lisboa, na Rua dos Bacalhoeiros, com as suas conservas (e agora também ela no Mercado da Ribeira), um exemplo de como o comércio tradicional pode sobreviver se souber não perder a identidade e manter a qualidade — e isso passa também por travar batalhas (e vencê-las) para provar que o queijo fica melhor curado em tábuas de madeira. Afinal, quem anda nisto há tanto tempo há-de saber melhor como se deve fazer.     

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